Eu sou Doula, e gosto de trabalhar com toda gente, independentemente de quem sejam e independentemente das suas escolhas para o parto. Mas isto de ter o “bichinho” da sociologia e de ser afrodescendente fez-me pesquisar sobre as minorias étnicas no contexto português.
Das histórias informais, o que sei é que as mulheres negras e ciganas são as que mais sofrem discriminação nos hospitais na altura de terem as crianças, histórias que espelham o facto de as equipas de saúde terem preconceitos sobre cada grupo:
– “As mulheres africanas são fortes, aguentam muito as dores.”
– “As mulheres ciganas têm menos tolerância à dor e exacerbam as reacções, assim como os que as acompanham.”
Confesso que da comunidade cigana conheço muito pouco, não conheci muitas pessoas de etnia cigana ao longo da minha vida, com alguma pena. Quanto às mulheres africanas ou afrodescendentes (tendo em conta que a maior parte hoje em dia já é segunda geração em Portugal), bem conheço essa ideia de que são fortes e aguentam bem as dores. Felizmente, no meu parto não senti esse tipo de discriminação. Mas outra história, há 33 anos quando eu nasci, num hospital no distrito de Lisboa, parto cesariana, filha de mãe solteira na altura, uma jovem de 26 anos negra e sozinha, uma das enfermeiras quis ficar comigo. A minha mãe estava numa situação vulnerável e tinha todas as dificuldades extra que se juntavam a um pós parto de cesariana.
No entanto, não fiquei satisfeita com essas histórias informais e fui procurar informação sobre a situação destes dois grupos em Portugal.
Após ler alguns estudos percebi que em Portugal as mulheres imigrantes e de grupos de minoria étnica tendem a ter mais bebés prematuros e/ou de baixo peso. Alguns dos motivos são:
– O desconhecimento das mulheres sobre o funcionamento do sistema de saúde e por isso a vigilância e o acompanhamento à gravidez é tardio;
– O desconhecimento dos/as funcionários/as das instituições de saúde acerca das leis vigentes, que incluem os imigrantes no acesso gratuito à saúde materno infantil;
– A pobreza e discriminação social.
Para além dos pontos referidos acima, também factores relacionados com a falta de empatia para com estas mulheres e a desvalorização da “cultura do outro”. Num dos estudos, por exemplo, referiram que algumas mulheres ciganas fugiram do hospital depois do bebé nascer porque apagavam a luz do quarto à noite. Na cultura cigana, o bebé recém-nascido deve ter sempre ao seu lado uma lâmpada acesa até ao seu baptismo e as mulheres ciganas não se sentem à vontade com médicos ou enfermeiros homens (aliás, existem várias mulheres que sentem o mesmo). Também para esta mesma cultura, gravidez não é doença e por isso só vão ao hospital quando sentem que alguma coisa não está bem, as mais jovens na primeira gravidez vão a algumas consultas para saberem se está tudo bem e o sexo do bebé. As mulheres ciganas começam a optar cada vez mais por ter o bebé em ambiente hospitalar, por reconhecerem que é mais seguro, mas grande parte das mais velhas teve os filhos em casa (mas sem profissionais de saúde acreditados para o fazer em segurança), com ajuda das mulheres mais “curiosas” e experientes da comunidade.
As mulheres africanas, supostamente, já têm de ser fortes fora da porta do hospital, será que na altura de terem os seus bebés não podem mostrar um pouco mais da sua vulnerabilidade? Não podem sentir as dores e queixarem-se das contrações tal como as outras mulheres? Por que é que têm de aguentar mais até que alguém as ouça e cuide delas? Estudos apontam que as mulheres negras, por comparação com as mulheres brancas, têm uma taxa de mortalidade materna superior, assim como a taxa de mortalidade perinatal dos seus bebés é maior. Entre os factores para tal situação, estão a discriminação social – são sempre as últimas a serem cuidadas por considerarem que são tolerantes à dor; a baixa escolaridade e consequentemente a condição económica – são famílias mais pobres no desemprego ou com empregos precários. Desta forma, a ausência de planeamento familiar e educação sexual e de saúde materna é uma constante nas vidas destas mulheres, uma reprodução do meio em que estão inseridas vai perpetuando as condições em que vivem, e o acompanhamento e vigilância da gravidez e doenças que eventualmente possam surgir é tardio.
No contexto internacional, temos o exemplo dos Estados Unidos, em que as mulheres negras têm entre três a quatro vezes mais probabilidades de morrer de complicações no parto do que as mulheres brancas. As causas, para além dos factores socio-económicos acima referidos, incluem também a desvalorização dos sintomas das mulheres negras, ou seja, as mulheres brancas são monitorizadas e tratadas com mais cuidado do que as mulheres negras. Temos exemplos de mulheres negras reconhecidas internacionalmente, como a cantora Beyoncée e a jogadora de ténis Serena Williams, que falam que tiveram problemas nos seus partos. Serena já tinha sofrido uma embolia pulmonar e, na altura do parto, alertou a equipa médica, que desvalorizou essa informação e perdeu tempo precioso para fazer um diagnóstico de algo para o qual ela já tinha alertado. O racismo afecta a forma como as mulheres negras são tratadas pelo sistema de saúde: são tratadas de forma diferente, a informação que dão ou pedidos que fazem são desvalorizados. O racismo é estrutural nas próprias instituições da área da saúde. No Reino Unido, a probabilidade de uma mulher negra morrer é de 1 em 2500, nas mulheres brancas o valor é cinco vezes mais baixo.
Quando a mulher entra em trabalho de parto, a parte do cérebro que começa a funcionar é a instintiva e animal (cérebro primitivo, todos os mamíferos têm, é o que coordena as nossas funções vitais e instintivas). Para que isso aconteça, o cérebro racional, o neo-córtex (cérebro que nos diferencia dos animais, pela capacidade racional e intelectual) tem de estar inactivo e a mulher tem de sentir-se em segurança, cuidada e tem de estar resguardada do que possa estar a acontecer ao seu redor. Ora, se a mulher está num sítio em que quem devia cuidar dela e ser compreensivo está a desrespeitá-la por não saber falar a língua (nessa altura a expressão corporal e facial pode assustar imenso), está a desrespeitá-la por ter uma cultura diferente, não leva a sério as suas queixas, ou por ser “piegas” ou por “ser forte e ter tolerância à dor” logo, pode esperar mais um pouco, essa mulher encontra-se em desvantagem porque mais dificilmente conseguirá deixar as hormonas certas do parto funcionar, a hormona em destaque será a adrenalina e a produção de ocitocina será deficiente, com a consequente cascata de intervenções.
Para que estas mulheres se sintam bem recebidas nestes serviços, podemos tentar entender um pouco as suas culturas para perceber certos comportamentos e, desta forma, tentarmos ajustar-nos à pessoa que ali está. É urgente que haja sensibilização dos profissionais de saúde e de todo corpo técnico que lida com as utentes deste tipo de serviço para que respeitem a diversidade cultural de toda a população, que conheçam as leis vigentes neste contexto e que os serviços sejam adequados à população circundante e, de alguma forma, mais humanizados. Por outro lado, também sei da dificuldade que tem sido gerir estes serviços com um número reduzido de recursos humanos, mas se ao menos houvesse um esforço para a divulgação de informação dos dois lados, a educação da saúde seria importante em alguns dos grupos que são discriminados.
Portanto, tendo em conta os exemplos internacionais e os nacionais, é necessário, em primeiro lugar, o reconhecimento das próprias instituições, da sociedade, de que este tipo de discriminação é estrutural, não basta as pessoas dizerem que não são racistas por não terem atitudes destas no seu quotidiano, têm de ser implementadas medidas anti-racistas para mudar este tipo de tratamento, este conjunto de comportamentos e atitudes. Reconhecimento, formação e mudança de comportamentos, é deste tipo de abordagem que precisamos.
Bibliografia:
- TOPA, Joana Bessa; NOGUEIRA, Maria da Conceição Oliveira Carvalho e NEVES, Ana Sofia Antunes das. Dos discursos e práticas dos/as técnicos/as de saúde aos direitos das mulheres imigrantes nos contextos de saúde. Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher [online]. 2016, n.36, pp.63-82. ISSN 0874-6885.
Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0874-68852016000200006&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0874-6885.
- MEndES, Manuela, e outros Estudo nacional sobre as comunidades ciganas / Manuela Mendes, olga Magano, pedro Candeias. – (Estudos obCig ; 1) iSbn 978-989-685-064-7 i – MAgAno, olga Maria dos Santos, 1965ii – CAndEiAS, pedro Cdu 316
- TOPA, Joana; Cuidados de saúde materno-infantis a imigrantes na Região do Grande Porto- (Teses; 47, 2016) ISBN 978-989-689-082-1CDU 316
- https://www.bbc.com/news/uk-england-47115305
- https://www.heart.org/en/news/2019/02/20/why-are-black-women-at-such-high-risk-of-dying-from-pregnancy-complications
Excelente artigo.
Tema que tarda em ser falado, discutido e implementado. Nos dias de hoje já se fala na humanização do parto, mas é importante aferir se essa humanização teve ou tem em conta duferentes culturas.
Grata
Maria Semedo