Parto em Casa ~ Visão da APDMGP

Perante as recentes notícias relativas ao parto em casa ou parto domiciliar em Portugal e à assistência do parto por Enfermeiros Especialistas em Saúde Materna e Obstétrica (EESMO, vulgo enfermeiros -parteiros), divulgadas nos órgãos de comunicação social, a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto sentiu necessidade de reforçar e clarificar algumas questões que nos pareceram importantes.

Do ponto de vista legal

O direito da escolha do local de nascimento é uma das vertentes do Direito à Vida Privada plasmado no art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, do qual se fez jurisprudência no caso “Ternovsky vs Hungary”. A decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos pode ser consultada aqui: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001…#{%22itemid%22:[%22001-102254%22]}

O parto fisiológico e de baixo risco é, em Portugal, da competência dos Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica (vulgo enfermeiros-parteiros, como serão referidos doravante no texto), tal como está legislado no art. 4º nº 1 c) conjugado com o anexo 1 H3, em que se pode ler: (O Enfermeiro Especialista de Saúde Materna e Obstétrica) “Cuida a mulher inserida na família e comunidade durante o trabalho de parto, efetuando o parto em ambiente seguro, no sentido de optimizar a saúde da parturiente e do recém-nascido na adaptação à vida extra-uterina” do Regulamento 127/2011 publicado no DR 2ª Série – N.º 35 – 18 de Fevereiro de 2011.” O regulamento completo pode ser consultado aqui: http://www.ordemenfermeiros.pt/legi…

Como afirma a Organização Mundial de Saúde: “Em alguns países europeus as midwives [nota: em Portugal, Enfermeiras-Parteiras] são totalmente responsáveis pelo cuidado da gravidez normal e parto, seja em casa ou no hospital. Mas, em muitos outros países europeus e nos EUA quase todas as parteiras (se as houver) trabalham no hospital, sob a supervisão do obstetra. Em alguns países desenvolvidos criaram-se centros de nascimento fora dos hospitais, onde mulheres de baixo risco podem dar à luz numa atmosfera parecida à do domicílio, sob os cuidados primários, normalmente prestados por parteiras. Na maioria desses centros não existe monitorização fetal contínua nem aceleração artificial do trabalho de parto e há um uso mínimo de analgésicos. Um extenso relatório sobre os cuidados em centros de parto nos EUA descreveu os cuidados em centros alternativos de nascimento em hospitais e externos (Rooks et ai 1989). Experiências com cuidado gerido por parteiras em hospitais na Grã-Bretanha, Austrália e Suécia demonstraram que a satisfação das mulheres foi muito superior à norma. O número de intervenções era também geralmente menor, especialmente no que diz respeito à analgesia, indução e aceleração do trabalho de parto. Os resultados obstétricos não diferiram significativamente dos de uma unidade de obstetrícia.”

O documento completo, ‘Care in Normal Birth: a Practical Guide’, pode ser consultado aqui: http://www.who.int/maternal_child_a…

 

O ponto de vista da Associação Portuguesa Pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP)

Quando há complicações no parto, é certamente de extrema importância que estejam disponíveis, para a mulher e para o feto ou bebé, todos os meios possíveis de intervenção para garantir o bem-estar e sobrevivência de ambos. No entanto, é também importante ter noção de que o parto fisiológico deve ser o objetivo a atingir, sempre que as condições de saúde de ambos o permitam, e se essa for a vontade da mulher, devendo ser dadas condições para que este aconteça. Por outro lado, o parto em casa é uma realidade em Portugal e é legal. Para que se possa desenrolar com o máximo de segurança e clareza para todas as partes envolvidas, é recomendável que o mesmo seja regulado. Não só para proteger e informar os casais que o escolhem como também para apoiar os profissionais que o praticam. É necessário também que seja debatido o modelo de assistência ao parto vigente nos hospitais portugueses, que pode ser uma das razões pelas quais as mulheres se sentem desrespeitadas e empurradas para opções que podem vir a ser perigosas em virtude da ausência de regulamentação. De salientar ainda que não é apenas em casa que os partos ocasionalmente terminam numa situação dramática – isso acontece também nos hospitais.

Para além das importantes e basilares questões da saúde física e sobrevivência, importa avaliar igualmente o bem-estar emocional, a dignidade e o respeito proporcionados às mulheres, bebés e famílias na assistência ao parto, à luz dos direitos humanos.

Para se inteirar da realidade no nosso país, a APDMGP conduziu um inquérito sobre as Experiências de Parto em Portugal ao qual responderam 3383 mulheres. A quase totalidade dos partos reportados aconteceu em ambiente hospitalar, que é a única opção contemplada pelo Serviço Nacional de Saúde. No entanto, mulheres houve que optaram por parto domiciliar, ficando por esclarecer que outras opções lhes foram apresentadas ou das quais lhes foi dado conhecimento. Verificámos que mais de dois quintos das mulheres consideraram que não tiveram informação sobre opções de parto, como indução, cesariana, parto domiciliar, entre outras. Verificámos que a maioria das mulheres teve alguma intervenção durante o seu trabalho de parto e parto (apenas cerca de 11% de partos foram sem intervenção), o que contrasta com o número expectável de partos fisiológicos numa população como a portuguesa, e com a percentagem das mulheres grávidas que de uma forma geral podem ser consideradas de baixo risco no início do trabalho de parto: cerca de 70 a 80% (WHO, 1996, p.4). Surgiram exemplos de práticas não recomendadas e classificadas como violência obstétrica, como a manobra de Kristeller ou procedimentos sem consentimento esclarecido ou contra a vontade da mulher. No entanto, é reconhecido que os cuidados de boa qualidade exigem a eliminação de abusos e maus-tratos durante a gravidez e parto, sendo toda a intervenção baseada no respeito pela dignidade humana, sem discriminação. Isto só pode ser facilitado através de uma abordagem para a saúde baseada em direitos humanos.

Todos os resultados do Inquérito podem ser consultados aqui: http://www.associacaogravidezeparto.pt/…

Opções de parto – estudos e experiência noutros países

Para além do parto hospitalar, existem outras opções baseadas em evidências científicas que têm vindo a ser recomendadas noutros outros países europeus. No Reino Unido, por exemplo, o NICE (The National Institute for Health and Care Excellence) emitiu recentes orientações referindo que os profissionais devem aconselhar todas as grávidas de baixo risco a ter um parto fora do hospital, seja em casa ou em casas de parto lideradas por midwives (NICE, 2014): “Aconselhar grávidas de baixo risco a planear dar à luz em casa ou numa unidade liderada por enfermeiras é particularmente adequado, porque a taxa de intervenções é menor e os resultados para o bebé não são diferentes em comparação com uma unidade de obstetrícia.

  • Um parto planeado no domicílio ou numa unidade liderada por enfermeiros-parteiros está associado a uma maior taxa de parto vaginal espontâneo do que um parto planeado para uma unidade de obstetrícia.
  • Os partos em unidades de obstetrícia estão associados a uma taxa mais elevada de intervenções, como o parto vaginal instrumentado, cesariana e episiotomia, em comparação com os partos planeados em outros ambientes. “

As orientações da NICE podem ser consultadas na íntegra aqui: http://www.nice.org.uk/guidance/cg1…

Pouco depois das orientações do NICE terem sido emitidas, o New England Journal of Medicine convidou o obstetra americano Neel Shah, M.D., M.P.P. a escrever uma resposta: “O que difere entre Grã-Bretanha e os Estados Unidos é a maneira de como a possibilidade do parto em casa é apresentada e gerida. O NICE apresenta o nascimento em casa como uma opção razoável, sensível à preferência e enfatiza os riscos de intervenções desnecessárias em hospitais. Por outro lado, o ACOG – American Congress of Obstetricians and Gynecologists sublinha categoricamente os riscos da falta de intervenção e afirma inequivocamente que «os hospitais e centros de parto são o cenário mais seguro para o nascimento». Como obstetra americano formado não tenho dúvidas de que os Estados Unidos oferecem um excelente atendimento para gestações clinicamente complicadas. Mas há lições a serem aprendidas com o sistema britânico. Para a maioria das mulheres com gravidezes de baixo risco é de facto melhor dar à luz no Reino Unido.”

A resposta completa deste médico obstetra americano pode ser consultada aqui: http://www.nejm.org/doi/full/10.105…

Há partos em casa em Portugal que decorrem adequadamente, quando a assistência é correta e prestada por profissionais competentes e acreditados para tal. Em causa está o modelo de assistência ao parto e as representações sociais do parto, vigentes ou emergentes. O parto em casa é uma realidade em inúmeros países com indicadores materno fetais semelhantes ou ainda melhores que os de Portugal, nomeadamente a França, Alemanha, o Reino Unido, a Islândia e o Luxemburgo. Para o parto em casa deixar de ser um tabu em Portugal, passível de suscitar medo, aversão e de se manter à margem, é necessário, não “combatê-lo”, mas regulá-lo.

As recomendações das Nações Unidas a Portugal

Em Outubro passado, teve lugar a 62ª sessão do comité CEDAW – Comité para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra as Mulheres, um organismo das Nações Unidas. Este Comité tem o mesmo nome da Convenção cujo cumprimento vigia e que foi ratificada por Portugal em Setembro de 1980. Os Estados que ratificaram a Convenção reportam perante o CEDAW, sendo as Organizações Não Governamentais convidadas a apresentar o seu próprio relatório.

A contribuição da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto para o relatório das ONG, o chamado ‘relatório sombra’, centrou-se na importância da concretização na prática dos direitos das mulheres na gravidez e no parto, com ênfase especial no consentimento informado e no alto nível de intervenção nos partos em Portugal:

“A política de cuidados de saúde materna em Portugal ainda é muito dependente de protocolos e procedimentos hospitalares (o peso institucional e hierarquia), o que resulta em partos altamente medicalizados, levantando questões sobre a necessidade das intervenções praticadas que são contrárias às recomendações da Organização Mundial de Saúde. Há também relatos de que as mulheres não receberam informação suficiente para atender às exigências de consentimento informado o que coloca em causa o cumprimento da Convenção sobre os Direitos do Homem e Biomedicina do Conselho da Europa artigos 5. e 9. Apesar da baixa percentagem de taxas de mortalidade perinatal e materna, quando se mede a qualidade dos cuidados de saúde durante a gravidez e o parto, o tratamento igualitário e o respeito pelas mulheres e pelas necessidades das suas famílias devem ser avaliados para para além do objetivo de uma mãe e bebé vivos.”

Estivemos em Genebra a sensibilizar os peritos do Comité para as questões que apontámos no Relatório Sombra, no sentido de conseguir uma recomendação final ao Estado Português, para melhorar as questões que nos chegam todos os dias através de muitas grávidas, parturientes e famílias.

O Comité CEDAW publicou no início do mês de Dezembro 2015 as suas recomendações finais a Portugal, que refletem o que há a melhorar relativamente à saúde das mulheres na gravidez e no parto:

“Saúde: 36. O Comité congratula as realizações significativas do Estado Português na redução da mortalidade infantil e materna. No entanto, está preocupado com a liberdade limitada vivida pelas mulheres nas escolhas de métodos de nascimento. O Comité está particularmente preocupado com os relatos de que muitas vezes as mulheres não são consultadas e são submetidas a partos excessivamente medicalizado e cesarianas.

  1. O Comité recomenda que o Estado preveja salvaguardas adequadas para assegurar que os procedimentos excessivamente medicalizados no parto, tais como cesarianas, sejam cuidadosamente avaliados e realizados apenas quando for necessário e com o consentimento informado da parturiente.”

Todas as recomendações do CEDAW ao Estado Português podem ser lidas aqui: http://plataformamulheres.org.pt/wp-content/ficheiros/2015/11/RecomendacoesCEDAW-PT-TraducaoPpDM30Nov2015.pdf

Incentivamos todos os cidadãos – profissionais, casais, famílias, todos quantos se interessam ou de alguma forma se relacionam com as questões relativas à gravidez e ao parto – a terem uma visão global acerca da questão do parto em Portugal. Esperamos que esta breve abordagem ajude a trazer luz sobre o se passa em Portugal e no mundo, relativamente ao modelo de assistência ao nascimento. Reiteramos que a APDMGP, como organização que representa o ponto de vista das mulheres e suas famílias, se foca sempre na perspetiva destas e nos seus direitos e capacidade de escolha. As famílias são diferentes, cada parto e mulher também o são, e como tal é necessário acolher e dar condições às mulheres para que as suas escolhas possam ser feitas de forma consciente e segura. O que é o parto desejado para uma mulher não o será para outra. Deixamos a porta aberta a todos os que connosco queiram discutir estas questões pois parece-nos que será sempre pelo diálogo, partilha de diferentes visões e abertura que se conseguirá chegar a um consenso. Quem ganha com isso são e serão sempre as mães e os bebés portugueses.

Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto

Lisboa, 14 Dezembro 2015