Posição da APDMGP sobre o termo Violência Obstétrica.

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP), nos seus 10 anos de existência, tem trabalhado com mulheres, pessoas grávidas, as suas famílias e profissionais de saúde nos seus vários papeis, no que são os cuidados de saúde materna e os direitos sexuais e reprodutivos em Portugal e no Mundo. Através de linhas de apoio e informação, grupos de partilha, tradução e divulgação da última evidência científica, realização de formações e conferências, conhecemos a realidade portuguesa, e, acompanhando de perto o que se passa nas nossas maternidades, sabemos bem como se nasce em Portugal.

Gostaríamos de poder afirmar que nestes últimos 10 anos vimos claras melhorias, que a prática se alinhou com a evidência e aquilo que se reivindicava em 2014 foi atingido. Infelizmente não é o caso. Os efeitos da pandemia COVID-19, assim como anos de desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde e consequente êxodo de recursos para o sistema privado, colocaram o nosso país perante uma situação de colapso da prestação de cuidados de saúde materna e obstétrica. Realidade essa que não promove o respeito, as boas práticas e os cuidados baseados em evidência, e onde a violência é prevalente.

Estima-se que o trauma no parto seja experienciado por um terço de todas as mulheres que dão à luz, o que em Portugal se traduz em cerca de 28 mil mulheres por ano. Pese embora a obrigatoriedade legal, que o país e as entidades hospitalares incumprem,  não existindo recolha, tratamento e divulgação de dados oficiais em Portugal nesse sentido, mas baseando-nos no que é a evidência de outros países, a produção científica nacional e o ativismo na área, sabemos que os grupos minoritários e as pessoas portadoras de critérios de alteridade, como as mulheres migrantes, as mulheres negras ou as portadoras de alguma deficiência, entre outras, são mais propensas a sofrer discriminação, principalmente quando onerados por fatores de discriminação múltipla e interseccional, e têm, juntamente com os seus bebés, maiores níveis de mortalidade e morbilidade. Sofrem de mais perigos físicos e emocionais durante a sua gravidez, parto e puerpério. É possível afirmar que nenhuma mulher está livre de poder vir a passar por algum tipo de violência durante o período perinatal.

Posto tudo isto, a APDMGP vem por este meio reafirmar a sua posição no que diz respeito ao uso do termo “Violência Obstétrica”, com o qual concorda e adota nas suas várias comunicações.

O debate acerca da terminologia apropriada para denominar o fenómeno dos maus-tratos no contexto da assistência obstétrica tem sido concorrido. A 29 de fevereiro de 2024, a publicação da tomada de posição conjunta da Associação Europeia de Medicina Perinatal (European Association of Perinatal Medicine – EAPM), do Conselho e Colégio Europeu de Obstetras e Ginecologistas (European Board and College of Obstetricians and Gynaecologists – EBCOG) e da Associação Europeia de Parteiras (European Midwives Association – EMA),  afirma-se contra a utilização do termo violência obstétrica. De acordo com estes grupos profissionais:

“(…)  termo “violência obstétrica” é utilizado em algumas partes do mundo para descrever diversas formas de cuidados de qualidade inferior e desrespeitosos durante o trabalho de parto, mas sugere que é praticada principalmente por obstetras e é uma forma grave de agressão, realizada com a intenção de causar danos. Acreditamos que este termo não deve ser utilizado, pois não ajuda a identificar o problema subjacente, as suas causas ou a sua correção.”

A APDMGP compreende e reconhece que alguns profissionais não se sintam representados pelo termo “Violência Obstétrica”. Sabemos e conhecemos profissionais de saúde que, muitas vezes em circunstâncias muito adversas, exercem a sua profissão com sentido de missão, boas práticas e dedicação a esta causa. Não obstante, consideramos

importante que as experiências negativas das vítimas sejam devidamente reconhecidas. E não conseguimos mudar o que não podemos nomear.

Como tem vindo a ser referido em diversas publicações acerca da discussão da terminologia, “obstétrica” refere-se ao sistema de cuidados e não a uma classe profissional em particular, pelo que disputamos a afirmação de que violência obstétrica “sugere que é praticada principalmente por obstetras”. Como amplamente discutido na literatura, a violência obstétrica é passível de ser praticada por qualquer pessoa implicada no sistema de prestação de cuidados. Da mesma forma, na literatura têm sido enumeradas as diversas formas de que a violência obstétrica se pode revestir, assinalando o caráter frequentemente não intencional deste tipo de maus-tratos, além dos diferentes graus de gravidade que a mesma pode assumir, pelo que questionamos também a afirmação redutora de que violência obstétrica “é uma forma grave de agressão, realizada com a intenção de causar danos”. Como afirma Sesia (2020), ao situar a problemática principalmente no nível micro das prestações de cuidados de saúde – instituições, funcionários e profissionais de saúde que não cumprem os padrões mínimos de cuidado -, presta-se menos atenção às estruturas de poder e desigualdades de género que enquadram a dita falta de cuidado e o exercício de violência, assim como ao papel que a biomedicina assume nessas interações. Numa recente publicação do Parlamento Europeu, Brunello et al. (2024 assinalam o carácter estrutural do fenómeno: “A violência obstétrica e ginecológica inclui múltiplas formas de práticas nocivas, perpetradas durante os cuidados obstétricos e ginecológicos. Estas práticas são consideradas violentas, devido à sua natureza estrutural; isto é, elas são o resultado de um contexto organizacional que facilita a emergência e manutenção de padrões de comportamento violentos e abusivos, nas instituições de prestação de cuidados de saúde.”

Violência obstétrica, termo difundido por ativistas na América Latina para descrever a violência durante a gravidez, o parto e o pós-parto, é atualmente linguagem consolidada para descrever o fenómeno dos maus-tratos, sendo utilizado em inúmeras publicações sobre o assunto e adotado, inclusive, por profissionais de saúde (veja-se, por exemplo, Katz et al. 2020). Destacamos:

No The Lancet, prestigiada Revista de especialidade em Medicina,  pode ler-se, no artigo publicado em junho de 2022, “Obstetric violence in historical perspective”:

“A violência obstétrica refere-se a danos infligidos durante ou em relação à gravidez, parto e ao período pós-parto. Essa violência pode ser tanto interpessoal como estrutural, decorrente das ações dos prestadores de cuidados de saúde e também de acordos políticos e económicos mais amplos que prejudicam desproporcionalmente as populações marginalizadas. Ao focarmo-nos na violência obstétrica, centramos a longa e duradoura história da reprodução biológica como um local de violência social. Ao fazê-lo, elucidamos como a violência obstétrica refletiu e ampliou diferentes formas de discriminação, opressão e exclusão social e política.”

A adoção da terminologia violência obstétrica remete-nos necessariamente para a análise do conceito de violência. Segundo a OMS, a violência representa “(…) o uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação.”. Prossegue a OMS, no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (2002), referindo que “(…) a inclusão da palavra “poder”, além da frase “uso da força física”, amplia a natureza de um ato violento e expande o entendimento convencional de violência de modo a incluir aqueles atos que resultam de uma relação de poder, inclusive ameaças e intimidações. O “uso do poder” também serve para incluir negligência ou atos de omissão, além de atos violentos mais óbvios de perpetração.”

O termo foi utilizado pela primeira vez numa publicação inglesa do médico James Blundell que remonta ao início do século XIX, para aludir às más práticas médicas na Obstetrícia a que eram sujeitas as parturientes e puérperas da época. Na mencionada publicação, lê-se “hemorragias, lacerações tremendas, inversões do útero, como as que agora

estão na mesa diante de vós – tais são os efeitos da violência obstétrica – violência obstétrica feroz e atroz; Moloch insaciável e sangrento, diante do seu santuário sangrento milhares foram sacrificadas, para serem sucedidas nos próximos anos por vítimas ainda mais numerosas

O termo “violência obstétrica” foi também adotado na Resolução n.º 2306/2019, de 3 de outubro, do Conselho da Europa, após o Relatório especial da ONU sobre esta matéria que menciona explicitamente o termo, tendo sido reconhecido em Portugal, através da Resolução n.º 181/2021, de 28 de junho, que recomenda ao Governo a eliminação de práticas de violência obstétrica e a realização de um estudo sobre as mesmas, bem como no Projeto-lei n.º 962/XV/2ª, no Projeto-lei n.º 963/XV/2ª e no Projeto-resolução n.º 947/XV/2ª, apresentados junto da Assembleia da República em 2023. O termo surge ainda numa Recomendação ao Governo Regional dos Açores para a prevenção e combate à violência obstétrica na Região, mas também na Contribuição do Provedor de Justiça de Portugal para o Estudo da Federação Iberoamericana de Ombudsman sobre Direitos Reprodutivos e Violência Obstétrica, bem como ainda, no caducado Projeto-lei n.º 912/XIV/2ª.

Lamentamos profundamente a posição das Ordens Profissionais, que desvalorizam as histórias de parto violentas de milhares de mulheres, bebés e suas famílias por todo o mundo, e que, ao fazê-lo, os revitimiza. A negação institucional da realidade fática, das más práticas reiteradas e dos casos concretos de violência revitimiza e retira dignidade às vítimas, negar o termo e a sua utilização é menosprezar e silenciar as vítimas de violência obstétrica.

O foco não deve estar no agressor quando se fala deste flagelo, mas sim na vítima, na sua escuta, na sua recuperação. A violência é um fenómeno endémico, e a violência obstétrica também o é, sendo importante a colaboração dos profissionais de saúde na erradicação deste problema de saúde pública.

A APDMGP está preocupada com tomadas de posição como a da Associação Europeia de Medicina Perinatal (European Association of Perinatal Medicine – EAPM), Conselho e Colégio Europeu de Obstetras e Ginecologistas (European Board and College of Obstetricians and Gynaecologists — EBCOG) e Associação Europeia de Parteiras (European Midwives Association —EMA), que nos coloca ainda mais longe de atingir melhorias nos cuidados e a verdadeira justiça e reconhecimento que é devida às vítimas de Violência Obstétrica.

Solicitamos a retração desta tomada de posição, e instamos a Associação Europeia de Medicina Perinatal (European Association of Perinatal Medicine – EAPM), do Conselho e Colégio Europeu de Obstetras e Ginecologistas (European Board and College of Obstetricians and Gynaecologists – EBCOG) e a Associação Europeia de Parteiras (European Midwives Association – EMA)  a focarem-se em soluções que possam erradicar a violência obstétrica e desrespeito nos cuidados, no sentido de se promover os direitos humanos das mulheres / pessoas grávidas; monitorizar o cumprimento da legislação em vigor; garantir a qualidade dos cuidados de saúde materna, com indicadores que tenham em conta a experiência das mulheres e dos profissionais de saúde e assegurar que a evidência científica seja sistematicamente incluída nas práticas, assim como tomar medidas para que procedimentos desnecessários, desatualizados e prejudiciais sejam abolidos de protocolos e rotinas, em Portugal, na Europa e no Mundo.

A APDMGP está disponível para colaborar nesse sentido.

Lisboa, 29 de maio 2024.

Referências Bibliográficas:

  • Brunello, Silvia, Gay-Berthomieu, Magali, Smiles, Beth, Bardho, Eneidia, Schantz, Clémence, Rozee, Virginie, et al. 2024. Obstetric and gynaecological violence in the EU – Prevalence, legal frameworks and educational guidelines for prevention and elimination. Brussels: European Parliament.
  • Katz, Leila, Amorim, Melania Maria, Giordano, Juliana Camargo, Bastos, Maria Helena, Brilhante, Aline V. Morais. 2020. “Quem tem medo da violência obstétrica?” Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, 20 (2). DOI: 10.1590/1806-93042020000200017
  • O’Brien, Elizabeth e Rich, Miriam. 2022. “Obstetric violence in historical perspective, The Lancet, Volume 399, ISSUE 10342, P2183-2185,https://doi.org/10.1016/S0140-6736(22)01022-4
  • Sesia, Paula. 2020. “Violencia obstétrica en Mexico: La consolidación disputada de un nuevo paradigma” In Violencia obstétrica en América Latina: conceptualización, experiencias, medición y estrategias. Patrizia Quattrocchi; Natalia Magnone (org.). Buenos Aires: EDUNLa Cooperativa, p. 3-29.