A questão do Parto em Casa em Portugal

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto está preocupada com a desinformação e falta de rigor da evidência científica e circunstancial da notícia publicada a 6 de Setembro [1] e das notícias que se seguiram sobre uma mulher que, no seguimento de uma transferência de parto domiciliar, lamentavelmente faleceu devido a uma hemorragia decorrente de uma cesariana.
Em primeiro lugar, queremos expressar o nosso pesar. Os nossos pensamentos estão com a família desta mulher, neste momento difícil, assim como com os profissionais que acreditamos terem feito tudo o que lhes foi possível para a assistir. Muito lamentamos a especulação e exploração da vida privada desta família em que se basearam as notícias que têm vindo a público, sem que sejam dadas a conhecer, na mesma medida, informações relevantes e rigorosas sobre o que efetivamente terá sucedido.

Relativamente às notícias em questão:

– Um parto planeado para ocorrer no domicílio é algo muito diferente de um parto que acontece acidentalmente em casa. Em algumas das notícias a que tivemos acesso, o “parto em casa” é levianamente tratado como se fosse um fenómeno homogéneo, quando não o é. Em gestações de baixo risco, o parto domiciliário planeado pode ser tão ou mais seguro que o hospitalar [2,3], e os profissionais capacitados para o assistirem sabem reconhecer a necessidade de transferência para o hospital atempadamente, por forma a garantir a segurança de mãe e bebé.

– Com base no que é noticiado, não é claro se este foi, de facto, um parto planeado para ocorrer em casa e em que condições foi acompanhado. Caso tenha sido, contrasta com o que está descrito sobre a generalidade dos partos planeados para ocorrer no domicílio no nosso país [4,5] e vai contra as recomendações disponíveis em Portugal sobre esta opção [6]. Usar este caso como se fosse representante de uma realidade maior é incorreto e irresponsável.

– É errado referir que uma idade gestacional de 41 semanas é, no nosso país, um limite após o qual há obrigatoriamente indicação médica para induzir o trabalho de parto, por um suposto aumento do risco associado à continuação da gravidez. Pelo contrário, a orientação da Direção-Geral da Saúde a este respeito é clara, referindo que a “maturação cervical e a indução do trabalho de parto não devem ser consideradas em gestações não complicadas como forma de abreviar a duração da gravidez, por motivos psicológicos ou sociais, ou para agendar a data do parto”, deixando contudo como possibilidade a realização de indução a partir das 41 semanas [7]. Esta situação não gera consenso nas sociedades científicas e profissionais internacionais. Por exemplo, o Colégio Americano de Ginecologia/Obstetrícia considera que a atitude expectante até às 42 semanas + 6 dias é uma opção válida e sensata para as mulheres que desejam aguardar o início espontâneo do trabalho de parto, mantendo a vigilância do bem-estar materno-fetal até ao parto. Numa revisão recente da evidência científica, publicada pela conceituada Cochrane Library, é evidente a existência também de riscos associados à indução do parto e de benefícios de uma gestão expectante entre as 42 semanas + 0 dias e as 42 semanas + 6 dias [8]. Havendo riscos e benefícios em qualquer uma das opções, e como em qualquer outra intervenção médica, cabe à mulher decidir se consente ou recusa a realização da indução do parto ou se prefere manter a vigilância até ao seu início espontâneo, intervindo apenas se existir alguma alteração na avaliação.

– Não está claro como decorreu esta transferência de casa para o hospital. Em Portugal não existe um protocolo estabelecido para estas transferências e não podemos ignorar que a forma como tais transferências decorrem e como as grávidas e profissionais são recebidos nas instituições hospitalares pode interferir na qualidade e desfecho dos partos [9]. Em países onde o parto em casa está menos integrado no sistema de saúde, com mais barreiras associadas ao acesso a esta opção e mais constrangimentos no momento de uma eventual transferência, há também piores resultados em saúde materna [10]. É, pois, urgente um debate sério e fundamentado sobre de que forma pode o sistema de saúde português contribuir para que o parto em casa seja ainda mais seguro no nosso país.
– Em Portugal, não existe informação estatística sobre o número de partos planeados para ocorrer no domicílio. Apenas o local efetivo do parto é registado. Assim, o número de “partos em casa” em Portugal a que muitas das notícias se referem inclui os partos planeados e os acidentais, enquanto o número de “partos hospitalares” inclui partos planeados para ocorrer no domicílio que terminaram no hospital após uma transferência. A informação estatística oficial, como tal, não é um bom recurso para ilustrar a dimensão do fenómeno ou as suas tendências de aumento ou diminuição. [11]

– Não existe nenhum país do mundo com taxas de mortalidade materna e perinatal de zero. Veicular, nas notícias associadas a este caso, preconceitos datados e infundados de que qualquer parto em casa teria melhores condições de segurança se ocorresse no hospital e que os profissionais que habitualmente o acompanham são impreparados é um exemplo de parcialidade e desinformação.

– O parto não é isento de riscos, seja em que local for. Cada mulher tem e deve continuar a ter o direito de decidir livremente sobre o local onde pretende ter o seu parto, de preferência tendo acesso a informação fidedigna sobre os diferentes benefícios e riscos, de acordo com a sua individualidade, e recebendo sempre os cuidados mais adequados por profissionais qualificados. O direito à escolha do local de nascimento é uma das vertentes do Direito à Vida Privada plasmado no art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, do qual fez jurisprudência o caso “Ternovsky vs Hungria” [12]. De notar que, no mais recente relatório da Organização das Nações Unidas sobre saúde materna, é recomendado que todos os países considerem a possibilidade de permitir o parto domiciliário e que evitem a sua criminalização [13]. Qualquer iniciativa futura que limite o direito da mulher na escolha do local de parto representaria, isso sim, um retrocesso.

A APDMGP está atenta aos desenvolvimentos sobre este caso e disponível para contribuir para a reflexão e o debate informados e responsáveis.

Data: 10/09/2019

Referências

[1] “Mulher morre depois de tentar parto em casa”, disponível em https://expresso.pt/sociedade/2019-09-06-Mulher-morre-depois-de-tentar-parto-em-casa 
[2] Birthplace in England Collaborative Group. (2011). Perinatal and maternal outcomes by planned place of birth for healthy women with low risk pregnancies: the Birthplace in England national prospective cohort study. BMJ, 343, d7400. https://doi.org/10.1136/bmj.d7400
[3] Hutton, E. K., Reitsma, A., Simioni, J., Brunton, G., & Kaufman, K. (2019). Perinatal or neonatal mortality among women who intend at the onset of labour to give birth at home compared to women of low obstetrical risk who intend to give birth in hospital: A systematic review and meta-analysis. EClinicalMedicine. https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2019.07.005
[4] Pintassilgo, S., & Carvalho, H. (2017). Trends and consequences of the technocratic paradigm of childbirth in Portugal: A population-based analysis of birth conditions and social characteristics of parents. Sexual & Reproductive Healthcare, 13, 58–67. https://doi.org/10.1016/j.srhc.2017.06.003
[5] Santos, M. (2014). Trajetórias de desinstitucionalização do parto. A rejeição da hegemonia biomédica na opção pelo parto em casa. VII Congresso Português de Sociologia. Retrieved from http://www.aps.pt/viii_congresso/VIII_ACTAS/VIII_COM0021.pdf
[6] Ordem dos Enfermeiros. (2012). Informação/recomendações à grávida/casal quando desejam um parto no domicílio.
[7] Direção-Geral da Saúde. (2015). Orientação da Direção-Geral da Saúde: Indução do trabalho de parto.
[8] Middleton, P., Shepherd, E., Crowther, C.A. (2018). Induction of labour for improving birth outcomes for women at or beyond term. Cochrane Database Syst Rev. 5(CD004945). https://doi.org/10.1002/14651858.CD004945.pub4
[9] Santos, M. (2018) Can the unequal access to home birth be framed as a source of inequalities? A comparison between Portugal and Denmark. Portuguese Journal of Social Science, 17(3), 335–347. https://doi.org/10.1386/pjss.17.3.335_1
[10] Snowden, J. M., Tilden, E. L., Snyder, J., Quigley, B., Caughey, A. B., & Cheng, Y. W. (2015). Planned Out-of-Hospital Birth and Birth Outcomes. New England Journal of Medicine, 373(27), 2642–2653. https://doi.org/10.1056/NEJMsa1501738
[11] Santos, M. (no prelo). A critical analysis of the organisation of home birth care in Portugal: regulations, limitations, and recommendations for change.
[12] European Court of Human Rights. (2011). Case of Ternovszky v. Hungary (Application no. 67545/09). Retrieved from http://hudoc.echr.coe.int/sites/fra/pages/search.aspx?i=001-102254#%7B%22itemid%22:[%22001-102254%22]%7D
[13] United Nations. (2019). A human rights-based approach to mistreatment and violence against women in reproductive health services with a focus on childbirth and obstetric violence. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/3823698?ln=en