Sobre a moda do “Parto Natural”, posição da APDMGP
A comunicação social, pelo grande alcance que possui e pela influência que tem em moldar a opinião pública, deve ter responsabilidade e sensibilidade nas afirmações que faz, e trabalhar no sentido de promover informação fidedigna à população.
Perante as recentes afirmações de que o Parto Natural é uma “moda”, dando a entender que este não é uma prática baseada na evidência científica recomendada pelas sociedades nacionais e internacionais, a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto decidiu publicar esta tomada de posição. Esperamos contribuir para a desmistificação de algumas das afirmações feitas e dar a conhecer a evidência científica que nos últimos tempos tem fortalecido o argumento de que, sem dúvida alguma, o parto normal, fisiológico e sem intervenções desnecessárias, traz melhores resultados para a mãe e bebé.
Desde a sua fundação em 2014, a Associação Portuguesa dos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto tem acompanhado a forma como as mulheres grávidas são tratadas nos hospitais portugueses, através da recolha de testemunhos e de um inquérito.
Sabemos que nas maternidades portuguesas, o que se chama de “parto normal” na verdade nada tem de normal, a não ser realmente ser a norma, no sentido de “o mais habitual”.
A quase totalidade dos partos vaginais em Portugal são conduzidos com recurso a uma multiplicidade de intervenções, muitas vezes sem uma indicação clínica real e algumas destas intervenções estão mesmo em desuso na maioria dos países europeus visto não terem benefícios e poderem trazer riscos acrescidos para a mãe e bebé.
Hoje sabemos que existe diferença entre uma intervenção necessária e um procedimento abusivo. O conceito de violência obstétrica trouxe para reflexão temas como a diminuição do envolvimento da mulher no seu processo de gravidez e de parto e como consequência os traumas, a depressão e o stress pós-traumático. Infelizmente em Portugal esta é uma realidade demasiado comum para ser ignorada e tem sido progressivamente desmistificada. Como resultado cada vez mais mulheres/ casais já constroem o seu plano de parto (documento que regista os seus desejos para o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato) e este é reconhecido por alguns profissionais como sendo uma ferramenta importante para uma dinâmica positiva no parto. Inclusivamente a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, revelou no 2º Encontro Nascer em Amor que está a ser preparado um modelo de plano de parto pela DGS.
Reconhecemos que em Portugal temos taxas de mortalidade materna, neonatal e infantil das mais baixas do mundo (1,9/1000 e 8/1000, respectivamente, segundo o Documento da DGS “A Saúde dos Portugueses” 2004-2014). Mas por outro lado, somos dos países da Europa com as mais elevadas taxas de cesariana, episiotomia e indução do trabalho de parto, entre outras intervenções (European Perinatal Health Report, 2013; Ordem dos Enfermeiros, 2012).
No entanto parece-nos que está na hora de subir a fasquia e almejar que uma experiência de parto positiva não signifique apenas que a mãe e o bebé sobrevivem ao parto. Focarmo-nos apenas na mortalidade, faz-nos ignorar questões importantes tais como a morbilidade imediata e futura da mãe e do bebé, o impacto de uma experiência positiva ou negativa no futuro da mulher e da família, e o respeito pelos Direitos Humanos nomeadamente o da autonomia e do consentimento informado. Tais questões merecem ser consideradas, além do objetivo de uma mãe e bebé simplesmente vivos.
As mulheres querem coisas simples e benéficas no parto. Querem apoio contínuo, por exemplo por uma doula, e a evidência científica mostra que este apoio diminui as complicações e as intervenções no parto. Querem o recurso à água no trabalho de parto e está mais do que fundamentado cientificamente o benefício deste método não farmacológico do alívio da dor. Querem ser informadas de uma forma honesta, ter autonomia para fazer as suas escolhas e serem respeitadas. E esta é a base para o cumprimentos dos Direitos Humanos no Parto.
De acordo com os resultados no nosso questionário “Experiências de Parto em Portugal”, que cobre o período de 2012 até ao primeiro trimestre de 2015 e ao qual responderam mais de 3800 mulheres, muitas relatam terem sido submetidas a intervenções sem que existissem ou lhes fossem comunicadas as evidências da sua necessidade, e que podem inclusivamente ser prejudiciais à sua saúde física e mental. É com extrema preocupação que constatamos que a manobra de Kristeller (pressão na barriga) e a episiotomia são realizadas na maioria dos partos vaginais. Também os procedimentos que visam a indução e aceleração do parto e o uso de instrumentos no período expulsivo foram relatados frequentemente. Estes não estão a ser utilizados segundo protocolos clínicos mas sim indiscriminadamente, visto que quase todas as mulheres relatam pelo menos uma destas intervenções.
Em 72,9% das mulheres que responderam ao nosso inquérito e que tiveram partos vaginais foi realizada episiotomia (corte na região do períneo entre a vagina e o ânus). A Organização Mundial de Saúde recomenda que esta taxa não ultrapasse os 15% visto que a sua prática por rotina, como é feita em Portugal, não produz melhores indicadores de saúde para mães e bebés e pode levar a disfunção sexual, incontinência urinária e uma recuperação mais lenta e dolorosa da mulher durante o puerpério.
Quanto ao parto por cesariana, a OMS refere que “A nível populacional, taxas de cesariana maiores que 10% não estão associadas a uma redução da mortalidade materna e neonatal.” Por outras palavras, não há vantagens e aumentam os riscos para a mãe e para o bebé quando as taxas de cesariana ultrapassam os 10%. Portugal regista uma taxa de cesariana na ordem dos 28% no público e 66% no privado, de acordo Comissão Nacional para a Redução da Taxa de Cesarianas (CNRTC). Um número claramente excessivo.
A mesma Comissão alerta para os riscos do parto cirúrgico: risco de complicações anestésicas maternas duas vezes superior ao parto vaginal, de lesões urológicas 31 vezes superior, de hemorragia grave 11 vezes, quadruplicando a probabilidade de transfusão sanguínea. A mortalidade materna é cinco vezes superior na cesariana quando comparada com o parto vaginal e os riscos alastram também a gravidezes futuras, sendo o de placenta acreta (adesão anormal da placenta à cavidade uterina, com alto perigo hemorrágico) sete vezes superior. Relativamente ao bebé, se nascer por cesariana, as hipóteses de sofrer complicações respiratórias aumentam sete vezes e também há influência no risco de doenças na infância (alergias, diabetes, obesidade).
Em relação ao local do parto, 99% das mulheres em Portugal dão à luz em ambiente hospitalar e os partos no domicílio constituem 1% de todos os nascimentos.
A opção do local do parto também não é uma “moda” sem fundamento científico.
O parto em casa é uma realidade em inúmeros países nomeadamente na Europa do Norte com bons indicadores materno fetais, nomeadamente a França, a Alemanha, o Reino Unido, a Islândia e o Luxemburgo.
No Reino Unido, o NICE (National Institute for Health and Care Excellence) emitiu recentes orientações referindo que todos os profissionais devem aconselhar todas as grávidas de baixo risco a ter um parto fora do hospital, seja em casa ou em casas de parto lideradas por parteiras, porque a taxa de intervenções é menor e os resultados para o bebé não são diferentes em comparação com uma unidade de obstetrícia. (NICE 2014, http://www.nice.org.uk/guidance/cg190)
Há partos em casa em Portugal que decorrem com assistência correcta e por profissionais competentes e acreditados para tal. O que está em causa aqui, é o modelo de assistência ao parto e as representações sociais do parto, vigentes ou emergentes. Para este deixar de ser um tabu, passível de suscitar medo, aversão e de se manter à margem da ideologia dominante é necessário não “combatê-lo”, mas regulá-lo. Relativamente ao parto domiciliar, pode ser consultado a posição da APDMGP em https://www.facebook.com/notes/associa%C3%A7%C3%A3o-portuguesa-pelos-direitos-da-mulher-na-gravidez-e-parto/parto-em-casa-vis%C3%A3o-da-apdmgp/1666170827001556/ .
Sobre a morte de bebés no parto, infelizmente acontece quer no domicílio quer em meio hospitalar e frequentemente não poderiam ser evitadas se o local de parto fosse diferente.
Gostaríamos também de relembrar que, em Outubro de 2015, teve lugar a 62ª sessão do comité CEDAW – Comité para a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra as Mulheres, no qual a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto participou e onde foram feitas as seguintes recomendações ao Governo Português:
“Saúde:
- O Comité congratula as realizações significativas do Estado Português na redução da mortalidade infantil e materna. No entanto, está preocupado com a liberdade limitada vivida pelas mulheres nas escolhas de métodos de nascimento. O Comité está particularmente preocupado com os relatos de que muitas vezes as mulheres não são consultadas e são submetidas a partos excessivamente medicalizado e cesarianas.
- O Comité recomenda que o Estado preveja salvaguardas adequadas para assegurar que os procedimentos excessivamente medicalizados no parto, tais como cesarianas, sejam cuidadosamente avaliados e realizados apenas quando for necessário e com o consentimento informado da parturiente.”
O documento completo pode ser consultado aqui:
http://tbinternet.ohchr.org/Treaties/CEDAW/Shared%20Documents/PRT/CEDAW_C_PRT_CO_8-9_20571_E.doc
No inquérito da APDMGP, apenas cerca de metade das mulheres relatam que tiveram o parto que desejavam. As mulheres referiram que esse sentimento adveio de uma falta de controle sobre a situação e por não terem sido envolvidas no processo de decisão, facto que encontra eco na evidência científica sobre este assunto (Gibbins, J., Thompson, AM, 2001, Waldenstöm, U., 2004).
Consideramos lamentável que, nos dias de hoje, um número significativo de mulheres continuem a referir não terem tido acesso a informações suficientes sobre as opções de parto, suas vantagens e/ou consequências, como a indução, cesariana, parto domiciliar ou outros. Desta forma não foram cumpridos os requisitos para um consentimento informado, questionando o cumprimento dos artigos 5 e 9 da Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina.
Mas afinal o que procuram as mulheres e suas famílias nesta “moda” do parto natural?
Temos assistido a inúmeras petições subscritas e assinadas por milhares de pessoas, o que afasta a ideia de que é uma luta de uma minoria privilegiada e desinformada.
As mulheres têm feito chegar a sua voz aos decisores políticos, através de petições como: Parto na Água, Acompanhante nas Cesarianas, Alargamento da Licença de parentalidade, Dia Mundial da Perda Gestacional, Pedido para alargamento do número de acompanhantes de uma mulher em trabalho de parto para além do pai. As mulheres estão cientes daquilo que gostavam que mudasse na sociedade em que vivem e não têm receio de o pedir. Tudo o que manifestaram ser importante para si representa questões fundamentais para o bem-estar e saúde pública da nossa sociedade.
Concluindo: consideramos que o parto deve ser conduzido de forma a que quando surgem complicações esteja disponível à mulher e ao feto todos os meios possíveis de intervenção para garantir o bem-estar e sobrevivência de ambos. Não há dúvidas que os nossos serviços hospitalares estão aptos em meios e competência profissional para lidar com quadros de gravidez e parto clinicamente complicados. Também temos orgulho das taxas de mortalidade materna, neonatal e infantil portuguesas. No entanto, é também importante ter noção de que o parto fisiológico deve ser sempre o objetivo, se essa for a vontade da mulher e se a sua situação clínica o permitir. Sabemos é que frequentemente não são dadas as condições necessárias para que este aconteça. E isto sim é lamentável e irracional.
Sendo que a evidência científica, a legislação e as petições das mulheres que representam os seus desejos apontam nesse sentido, parece-nos a nós que tem todo o sentido seguir, encorajar e fortalecer esta “Moda”.
22 de Abril de 2017
Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto
Documento subscrito pelos Membros da APDMGP:
Bloom | Birth&Baby
Mães d’Água – Movimento cívico pelo Parto na Água em Portugal
Doula.pt