Entrevista a Michel Odent

“Esquecemos completamente quais são as necessidades básicas da mulher em trabalho de parto”

Aos 93 anos, Michel Odent é considerado um pioneiro e um dos mais importantes obstetras e especialistas em partos do mundo. No seu mais recente livro, “Poderá a humanidade sobreviver ao nascimento socializado?”, lançado no final de Junho de 2023, Odent teoriza que a forma como os bebés nascem actualmente pode ser uma das causas do aumento do número de distúrbios de desenvolvimento, problemas psicológicos e comportamentos aditivos, além de estar a mudar a humanidade de forma irreversível. 

Nascido em França em 1930, Odent estudou medicina em Paris e especializou-se em cirurgia na década de 1950, tendo sido nomeado pela Lancet como “um dos últimos verdadeiros cirurgiões gerais”. Foi responsável pelas unidades cirúrgicas e de maternidade do hospital Pithiviers, em França, de 1962 a 1985, onde desenvolveu um interesse especial nos factores ambientais que influenciam o processo de nascimento. Deslumbrado com o trabalho das parteiras de Pithiviers, Odent acabaria por se especializar em Obstetrícia e introduzir os conceitos de salas de parto, parto na água e sessões de canto para mulheres grávidas. 

Odent foi ainda o autor dos primeiros artigos sobre o início da amamentação imediatamente após o parto, o uso de piscinas durante o trabalho de parto e a teoria do controle da dor na obstetrícia. Após a sua carreira hospitalar, acabou por se dedicar ao parto domiciliar e fundou, já em Londres, onde vive há 40 anos, o Primal Health Research Centre. Este centro online agrega uma base de dados de artigos científicos sobre gravidez, nascimento, microbiologia, genética e epidemiologia e explora as correlações entre o período perinatal e a subsequente saúde da criança e da mãe. 

Com mais de 15 livros publicados em 22 idiomas, Odent, que se vê como “um estudante interdisciplinar da natureza humana” focou-se, nos últimos anos, na possível evolução do Homo sapiens em relação às formas modernas de nascer.

Em 2017, o The Guardian escreveu que “Michel Odent deixou de ser o pioneiro do nascimento natural para se tornar um ‘apocalíptico’, prevendo que as cesarianas e induções do parto aumentarão os distúrbios do espectro do autismo e mudarão a humanidade ao nível da evolução da espécie”. Michel Odent recebeu-nos na sua casa, em Londres, onde ficámos a perceber um pouco melhor a razão das suas afirmações.

As cesarianas aumentaram mundialmente em praticamente todos os países.

Na sua opinião, Michel, porque é que isto aconteceu?

Sim, podemos questionar-nos sobre o porquê de haver cada vez mais cesarianas em todo o mundo, apesar de haver diferenças. Ainda existem países onde a percentagem é de apenas 20% e países que têm mais de 50%, mas a tendência é a mesma em todo o lado. E não são apenas mais cesarianas, é também cada vez mais comum o uso de fármacos, o recurso à oxitocina sintética, ou seja, a substituição da hormona natural, a oxitocina. É também cada vez mais comum dar à luz com anestesia epidural. Portanto, em geral, este é um fenómeno novo em todo o mundo. Poderemos dizer que o número de mulheres que dá à luz graças à libertação das suas hormonas naturais é insignificante a nível planetário. E isto é grave, quando se sabe que o fluxo hormonal que uma mulher deve libertar ao dar à luz o bebé e a placenta é uma espécie de cocktail de hormonas do amor. O que observamos a nível planetário é que agora, para dar à luz, as mulheres não precisam de libertar esse cocktail das hormonas do amor. Devemos acrescentar também que, hoje em dia, a maioria dos bebés não nascem entre os micróbios que são familiares à mãe. Nascem num ambiente sem grande variedade de micróbios e isso é uma questão muito importante, porque o sistema imunitário do recém-nascido, imediatamente após o nascimento, é suposto ser ‘educado’ e ‘programado’ graças aos primeiros micróbios que colonizam o corpo do bebé. Actualmente, as mulheres dão à luz num ambiente que não é bacteriologicamente familiar e que tem, podemos dizer, uma falta de diversidade de micróbios. Então, subitamente, a nível global, há algo de novo na forma como o sistema imunitário dos seres humanos se desenvolve, imediatamente após o nascimento. O sistema imunitário é essencial para o que será a nossa saúde, portanto estamos realmente numa situação absolutamente nova a nível global e a tendência é a mesma em todo o lado. Este é um ponto muito importante.

Porquê?
Porquê, porquê, porquê? (risos) Há várias razões. Devemos entender que isto é o resultado de uma longa história que começou nesta fase da história da humanidade, quando os nossos antepassados começaram a dominar a natureza. Isto é o que chamamos de revolução neolítica. Na revolução neolítica, os nossos antepassados introduziram a agricultura e o domínio da natureza. Mas o domínio da natureza incluía também o controlo dos processos fisiológicos humanos relacionados com a reprodução. Assim, por exemplo, antes dessa altura, as mulheres isolavam-se para dar à luz. A partir da época em que os nossos antepassados começaram a dominar a natureza de formas diferentes, o nascimento foi socializado e cada vez mais e mais socializado. Foi o aparecimento das parteiras para as mulheres que, supostamente, precisavam da ajuda de uma parteira para dar à luz. Antes, não precisavam, davam à luz sozinhas. E depois, a socialização tornou-se cada vez mais e mais complexa, com práticas diversas e assim por diante, mas era uma tendência. Muitas instituições estavam envolvidas no nascimento, podiam ser instituições religiosas e mais recentemente instituições médicas. Assim, a actual prática farmacológica no nascimento é uma espécie de fase final na história da socialização do nascimento. Mas quanto mais o nascimento é socializado, mais difícil se torna, e chegámos a um ponto extremo, em que existem limites. É para o nascimento como é para muitos outros tópicos. Começámos a controlar, a dominar a natureza, tal como referido na nossa história, atingimos os limites. O mesmo acontece quando falamos de poluição dos oceanos, poluição da atmosfera, etc., atingimos os limites do controlo da natureza. O nascimento é um bom exemplo, mas a questão é que o nascimento significa também a evolução da nossa espécie.
 

Esse domínio da natureza justifica também por que é que há tanta intervenção nos hospitais, como a indução do parto?

Sim, sim. Porque depois de tantos anos, podemos dizer milénios, de nascimento socializado esquecemos completamente quais são as necessidades básicas da mulher em trabalho de parto. Seja pela existência de um tipo de paradigma dominante ou uma forma de pensar dominante, uma forma baseada no nosso condicionamento cultural, em que a mulher não tem poder para dar à luz sozinha. Ela precisa de ajuda, ela precisa de ser controlada por outra pessoa. Atingimos os limites. Devemos acrescentar que também houve avanços tecnológicos recentes que explicam, por exemplo, porque é que as taxas de cesariana são cada vez maiores. Uma das razões é que a cesariana se tornou mais fácil e mais rápida. Hoje, podemos fazer uma cesariana em 20 minutos, com perda de sangue reduzida, o que é novidade. Assim, quando há avanços tecnológicos, quando a cesariana se torna tão fácil, não hesitamos em utilizá-la. Quando eu era estudante de medicina, no início dos anos 50, a cesariana era ainda uma cirurgia bastante arriscada, portanto, este é um factor a ter em conta. Há muitos outros factores relacionados com os avanços tecnológicos, por exemplo, no que diz respeito à utilização do plástico. Hoje em dia, é fácil fazer tubos para introduzir drogas porque temos plástico seguro, podemos ter cateteres, tubos para cateter ou para anestesia epidural. Portanto, há muitos avanços tecnológicos que também explicam porque é tão fácil, agora, substituir as hormonas que se libertam naturalmente durante o processo do parto. Há muitos factores, mas o factor básico, antes de tudo, é cultural, é a falta de compreensão da fisiologia do nascimento. Esse é o factor principal. 

Acha que a mulher é vista como uma máquina que os médicos podem controlar ou que nos hospitais se esquecem os sentimentos e o papel das mulheres?  

A falta de compreensão do processo de nascimento é cultural. Não se trata apenas do médico nem dos outros membros da equipa médica, é a nossa cultura em geral. A base do nosso condicionamento cultural é de que uma mulher não pode, não tem poder para dar à luz sozinha. E isto é claro quando analisamos o vocabulário que utilizamos. Vou dar alguns exemplos para explicar que é cultural. Em grupos que promovem o parto natural utilizam frequentemente o termo coaching. Eu utilizo este termo porque é internacional. Para dar à luz é preciso um coach, significa que não consegue dar à luz sozinha, significa que precisa de um especialista que a guie. E esse é o termo que usamos em grupos que promovem aquilo a que chamamos parto natural. Nos círculos médicos falam de management, para dar à luz precisa de um manager. É a mesma forma de pensar entre os grupos que promovem o parto natural e os círculos médicos, é o mesmo condicionamento cultural e é por isso que este tema é tão difícil. A principal diferença é que quando se perde a linguagem científica torna-se mais fácil ajudar as pessoas a alcançarem uma nova consciência, para perceberem que com a ajuda de muitas disciplinas científicas emergentes, como a bacteriologia e a epigenética, é mais fácil explicar a situação em que nos encontramos. É por isso que, paradoxalmente, hoje em dia se torna mais fácil falar com médicos, com formação científica, do que com pessoas que promovem o parto natural. E estas são algumas das dificuldades para mudar a forma de pensar, é uma questão cultural.

Pegando nesse ponto sobre a mulher, em que ela já não acredita que pode dar à luz naturalmente, e que precisa de médicos ou de qualquer outra pessoa para ajudar… Muitas mulheres sentem medo e, talvez por isso, pedem uma cesariana. Isto também acontece porque há muitos mitos, que vai doer muito, que não consegue fazê-lo sozinha, que as ancas não são suficientemente largas ou que o bebé tem o cordão à volta do pescoço… Como vê a perpetuação destes mitos?

Isso mostra que muitas mulheres não se apercebem que têm poder para dar à luz sozinhas. Mas podemos explicar porque é que chegámos a tal situação, foi o efeito de milhares de anos de condicionamento cultural. Chegámos a um extremo e é por isso que é tão difícil inverter a situação. É por isso que, actualmente, não consigo encontrar melhor razão para o optimismo e para o poder da fisiologia moderna. Segundo a tradição, a mulher já não pode dar à luz sozinha, ela precisa de outra pessoa. Não é fácil reverter milhares de anos de condicionamento cultural, mas não é completamente impossível. E muitas vezes, quando quero introduzir uma nota de optimismo, recordo, menciono uma descoberta científica importante, da segunda metade do século XX. Algo que eu consigo perceber, por causa da minha idade, mas posso explicar como, durante a segunda metade do século XX, graças aos métodos científicos sofisticados, aprendemos e compreendemos algo que ninguém sabia há 50 anos: que um recém-nascido precisa da sua mãe. Isto mudou milhares de anos de cultura. Durante milhares de anos — e os cientistas também sabem —, havia crenças e rituais, aparentemente uma grande diversidade de crenças e rituais, mas o efeito foi sempre o mesmo, durante milhares de anos: separar a mãe e o recém-nascido, imediatamente após o nascimento, e atrasar o início da amamentação. Um exemplo do poderoso efeito de uma crença é a crença sobre o colostro e a forma como o bebé podia encontrar o peito, logo após o nascimento, serem maus para o bebé. Essa generalização foi amplamente difundida e tal crença queria dizer que, imediatamente após o nascimento, o bebé seria separado da mãe. A amamentação devia ser adiada, segundo esses rituais, cortar o cordão… Portanto, esta é a base do problema até aos recentes avanços científicos que nos ensinam, através de diversas perspectivas, que um recém-nascido precisa da sua mãe. Ensaios clínicos de controlo randomizados consideram os benefícios do efeito do contacto pele-a-pele, das hormonas, do contacto com o colostro, das vertentes bacteriológicas, neurológicas, etc. Aprendemos que o recém-nascido precisa da sua mãe. Ninguém sabia disso há 50 anos! Portanto, este é um efeito da fisiologia moderna e é uma razão para optimismo. Se durante o século XX foi possível redescobrir as necessidades básicas de um recém-nascido, então porque não descobrir, durante o século XXI, e mais uma vez graças aos métodos científicos sofisticados, as necessidades básicas do recém-nascido e da mãe? De facto, já é possível, se quisermos ter em conta alguns conceitos-chave importantes para compreender a natureza humana, particularmente o conceito da inibição do neocórtex.
 

Quão importante é para o bebé e para a mãe a ligação imediata e o contacto pele-a-pele? 

Isto pode ser visto de muitas perspectivas. Actualmente, gosto de dar uma maior importância à perspectiva bacteriológica. Para explicar a importância desse curto espaço de tempo temos de explicar porque é que os seres humanos são especiais em comparação com a maioria dos outros mamíferos. É que a placenta humana tem a capacidade de transferir para o feto, para o bebé e para a mulher, os anticorpos chamados IgG. Isto significa que quando nasce, este recém-nascido, o bebé humano, tem os mesmos anticorpos que a mãe, o que não é o mesmo para a maioria dos outros mamíferos. A maioria dos mamíferos recorre, imediatamente após o nascimento, aos anticorpos fornecidos pelo colostro. Isto é vital para eles. Consideremos um bezerro, por exemplo, o bebé de uma vaca. Este bebé não consegue sobreviver se não tiver imediatamente acesso ao colostro que está cheio de anticorpos. Esta é, portanto, a prioridade para a maioria dos mamíferos. Com os humanos não se passa a mesma coisa, os bebés recebem a maioria dos anticorpos antes de nascerem. Entre os seres humanos, as principais questões estão à volta do tipo de micróbios que irão ser os primeiros a colonizar o bebé. Idealmente, os corpos dos bebés deveriam ser primeiro colonizados por micróbios familiares à mãe, porque o bebé tem falta de anticorpos. Portanto, a questão é o quão familiares são os micróbios que colonizam o recém-nascido, e um ponto importante reside também na diversidade destes micróbios. Quando falamos sobre isto, numa perspectiva bacteriológica, damo-nos conta de que houve um ponto de viragem na história do nascimento. Isso começou, digamos, há um século. Antes disso as mulheres davam à luz num ambiente bacteriológico familiar, em casa, entre uma grande diversidade de micróbios. Hoje em dia é completamente diferente. A maioria das mulheres dá à luz num ambiente bacteriológico pouco familiar e pouco diversificado e isso é absolutamente novo. O sistema imunitário dos seres humanos, imediatamente após o nascimento, não é educado da mesma forma, e não é programado da mesma forma que antes deste ponto de viragem na história do nascimento. Do ponto de vista bacteriológico e imunológico somos obrigados a contrastar primeiro o nascimento em casa, numa prática bacteriológica, e o nascimento noutro lugar, num ambiente não familiar. Esta é uma forma de explicar as especificidades da nossa sociedade. Outra forma é explicar que as hormonas libertadas pela mãe e pelo bebé, durante o processo de nascimento, não são eliminadas de imediato, demora cerca de uma hora para a mãe e o bebé eliminarem as hormonas que libertaram durante o nascimento. E sem dar detalhes podemos dizer que cada uma destas hormonas tem um papel a desempenhar na interacção entre a mãe e o bebé. Este equilíbrio hormonal é um período crítico para a ligação entre a mãe e o bebé e é também, nesta perspectiva, um momento muito importante do nascimento. Isto é algo que podemos explicar hoje numa linguagem científica, independentemente das perspectivas. Não podíamos dizer isto há 50 anos. É por isso que hoje podemos induzir uma nova consciência, com pessoas com formação científica, e usar uma linguagem científica.

E quanto à perspectiva do amor e do apego?

Hoje em dia podemos explicar cientificamente que a capacidade de amar começa a desenvolver-se à nascença. Não podemos estudar o amor de uma forma científica sem nos referirmos àquele curto espaço de tempo após o nascimento. As hormonas libertadas pela mãe no parto, oxitocina, endorfina, prolactina, vasopressina, etc., são hormonas do amor e o bebé também entra neste equilíbrio hormonal, por isso é um período especial para o apego. Por exemplo, a mãe, após o nascimento, está sob o efeito das chamadas endorfinas, um tipo de morfina, um opiáceo. O bebé também, uma espécie de morfina. Sabemos que uma das propriedades dos opiáceos é criar hábitos, criar apego entre as pessoas, por isso, tornam-se dependentes uns dos outros. Assim, hoje em dia, podemos explicar porque é que o período que se segue ao nascimento é crítico para a ligação entre o bebé e a mãe. Estas explicações eram impossíveis há 50 anos, mas actualmente são fáceis de entender. E nós precisamos disso. Precisamos da perspectiva científica para incutir as tão necessárias novas consciências. Chegámos ao fundo, nos comportamentos, atingimos os limites. Não é apenas no nascimento, mas também no controlo da natureza, sejam quais forem os tópicos, atingimos os limites. Então, o que fazer a seguir? Essa é sempre a mesma pergunta. 

Na sua opinião, qual é a diferença entre um bebé que nasce de cesariana e é afastado da mãe durante uma hora, e um bebé que nasce naturalmente e fica imediatamente em contacto com a mãe?  

Quando nos perguntamos quais as diferenças entre o bebé que nasce de uma certa forma, por exemplo, por cesariana, e o bebé que nasce de outra forma, por exemplo, uma mulher que dá à luz usando drogas… Temos de recordar que somos seres humanos e os seres humanos são especiais. Somos diferentes dos outros mamíferos. Eu explico as diferenças. Se considerarmos os mamíferos não humanos, ao interferirmos no processo de nascimento, seja de que forma for, o efeito pode ser imediatamente observado a nível individual. Por exemplo, se pusermos a ovelha a dar à luz com uma anestesia epidural, sem as suas hormonas do amor, é simples, é fácil de observar. A mãe não vai cuidar do seu bebé, não está interessada no bebé. Isto passa-se com os mamíferos em geral. Entre os seres humanos é diferente, porque os seres humanos têm formas sofisticadas de comunicar. Criam hábitos culturais, cujos efeitos estão menos directamente ligados à forma como os bebés nascem e ao efeito do equilíbrio hormonal e mais directamente ao efeito do meio cultural. O efeito é determinado pelo meio cultural. Por exemplo, quando uma mulher está grávida e, por ser humana, um ser humano que fala porque pertence a um determinado meio cultural, sabe que está grávida e pode antecipar um comportamento materno. Isto é algo que outros mamíferos não conseguem fazer. Os outros mamíferos têm de esperar até ao dia em que realmente libertam um cocktail de hormonas do amor, no momento de dar à luz, para se interessarem pelo bebé e essa é uma grande diferença. É por isso que, entre os humanos, quando queremos saber quais os possíveis efeitos relacionados com o tipo de nascimento, precisamos de introduzir uma dimensão colectiva, precisamos de muitíssimos números de civilização cultural. Para ser mais concreto, a questão não é o que dizer deste bebé nascido por cesariana comparado com outro bebé nascido de outra forma. Essa não é a questão que se coloca entre os humanos. A questão que se coloca entre os humanos é: qual é o futuro da humanidade que nasce por cesariana? Essa é a questão entre os humanos; esquecer o indivíduo para pensar em termos de cultura civilizacional, o futuro da nossa espécie. É importante explicar isso às mulheres que, por vezes, sonham em dar à luz de uma certa forma, mas que não aconteceu exactamente assim; explicar que existem seres humanos e o objectivo, entre os humanos, é pensar em termos da evolução da cultura civilizacional, da humanidade, introduzindo uma dimensão colectiva. Actualmente, se uma mulher não pode ter um filho, pode ter uma concepção medicalizada. Portanto, neutralizámos as leis da selecção natural.

Qual é a sua opinião sobre os mitos que muitas vezes são perpetuados nas mulheres em trabalho de parto e que as levam a uma cesariana, como o cordão à volta do pescoço, o bebé pélvico, etc.?

O que as pessoas precisam de saber é que o cordão à volta do pescoço é incrivelmente comum. No nosso hospital, em França, quando o bebé nascia com o cordão à volta do pescoço, com duas ou três circulares, as parteiras nem sequer o mencionavam no relatório. Nos processos clínicos, do registo de nascimento, isso não era sequer mencionado por ser tão comum. No entanto, a parteira, para explicar, não podia acreditar nisso, no passado, antes da modernização da obstetrícia. Quando um bebé não nascia vivo, os médicos tinham de dar uma explicação simples e aceitável, e como muitos bebés nasciam com cordão nucal era fácil dizer “Oh, sim, talvez tenha morrido devido ao cordão no pescoço”. Claro que pode acontecer, mas é muito raro o cordão à volta do pescoço ser perigoso para o bebé. Actualmente, isso pode detectar-se com bastante facilidade mas na realidade é excepcionalmente raro que, no caso de bebés mortos durante o nascimento, a razão principal seja o cordão. Em geral, há muitas outras razões mas essa é uma boa explicação facilmente aceite pelo público. 

Em relação aos bebés em posição pélvica, o Michel disse que fez mais de 300 nascimentos deste género. 

Oh, sim, quando o bebé está em apresentação pélvica, ou seja, a cabeça do bebé não sai primeiro, mas saem primeiro as nádegas ou os pés. Isso ocorria em cerca de 6% dos nascimentos. Hoje em dia, regra geral, a maioria dos médicos prefere programar uma cesariana. Mas, para ter outra atitude, teríamos de compreender melhor as necessidades básicas das mulheres em trabalho de parto. Portanto, actualmente, de uma maneira geral, temos de aceitar que no contexto convencional do departamento de obstetras é sensato dar à luz por cesariana no caso de uma apresentação pélvica. 

Mas concorda que é necessária uma cesariana para estes casos?

Pessoalmente, tenho experiência com bebés em posição pélvica que nasceram vaginalmente, num determinado contexto. No entanto, actualmente, se tivermos em conta que a maioria das mães, parteiras e médicos não tem experiência com bebés pélvicos, e por isso têm medo da situação, e considerando os estudos publicados na literatura médica convencional, todos eles conduzidos pelo departamento de obstetras, temos de aceitar que, na maioria dos casos de bebés pélvicos que não dão a volta, é mais seguro planear uma cesariana. 

Qual é o melhor meio-ambiente para a mulher dar à luz?  

É difícil descrever um meio-ambiente ideal para o nascimento. Podemos dizer que o meio-ambiente para o nascimento deve satisfazer algumas necessidades. As mulheres precisam, idealmente, de estar num lugar onde não haja intelecto nem activação do neocórtex, pois ele não precisa de estímulo. Portanto, isso significa ter em conta o comportamento das pessoas à volta, o efeito da linguagem, a necessidade de silêncio, o efeito da luz e da temperatura, porque se estiver frio as hormonas libertam adrenalina, que é antagónica à oxitocina. A mulher precisa de se sentir segura e não de se sentir observada; há necessidades básicas. Não podemos dar uma receita, mas tendo falado nisso, sem pretender apresentar um modelo, posso descrever um meio-ambiente familiar que, em geral, é compatível com um nascimento o mais fácil e rápido quanto possível: uma mulher a dar à luz numa pequena sala escura, sem estar fria e sem ninguém à volta, com excepção de uma parteira experiente e silenciosa sentada a um canto e a tricotar. Um aspecto interessante é a possibilidade de podermos interpretar cada um dos componentes deste cenário numa linguagem científica. A propósito disto, publiquei o livro chamado “Do we need midwives?” e a capa do livro é uma típica parteira a tricotar (risos). Aparentemente é um pequeno detalhe. Digo isto porque, quando eu era estudante de medicina, as parteiras passavam muitas vezes a vida a tricotar. Hoje em dia, os fisiologistas dizem que as tarefas repetitivas, como tricotar, reduzem o nível de adrenalina, a hormona do stress. E também explicam que a libertação de adrenalina é contagiosa e infecciosa. Se uma parteira estiver cheia de adrenalina, esta é transmitida à mulher que está em trabalho de parto e pode não conseguir libertar oxitocina. Então, isto é apenas um exemplo, para dizer que é fácil de explicar cientificamente. Uma parteira sentada a um canto não está como uma observadora, sabe? Todos os detalhes são importantes. A questão é que tal cenário não é culturalmente aceitável. Este é o ponto de viragem em que nos encontramos. Quando descrevemos tal situação e falamos sobre isso com um profissional de saúde é imediatamente uma utopia. Não é aceitável. E quanto ao pai do bebé? E se a parteira for um homem? E como ouve o bebé? Muitas coisas assim. Imediatamente, dão-se conta, sim, facilita o nascimento, mas não é aceite culturalmente. E é aqui que estamos actualmente, quando consideramos a ameaça que o Homem tem de enfrentar. Se partirmos de uma perspectiva científica, podemos oferecer soluções, mas estas soluções, em geral, não são culturalmente aceites. Isso obriga-nos a flirtar com a utopia. Não é só com o nascimento. Falo também do grande problema climático, do CO₂ na atmosfera. Os cientistas sabem o que devemos fazer mas é culturalmente inaceitável. Por isso é sempre a mesma história. Hoje temos de enfrentar a ameaça humana que a humanidade tem de considerar, temos de flirtar com a utopia. Mas o importante é que ‘utópico’ não quer dizer impossível. 

Foi por isso que disse “Para mudar o mundo é preciso mudar primeiro a forma de nascer”?

Sim, essa é uma frase que escrevi há muito tempo, penso que em 1976. É aparentemente simples e serviu para relembrar que para mudar o mundo temos de mudar primeiro a forma como nascem os bebés. Hoje em dia é fácil de dizer esta frase numa linguagem científica, mas na década de 1970 era ainda, apenas, uma forma intuitiva.

Por Laura Ramos (Jornalista*)
*Não adopta o Acordo Ortográfico

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