Considerações legais acerca das novas recomendações da Organização Mundial de Saúde relativamente à episiotomia
Em 15 de fevereiro de 2018, a Organização Mundial de Saúde veio emitir novas recomendações relativamente à episiotomia (1). Se anteriormente às recomendações a que nos reportamos, a Organização Mundial de Saúde admitia uma taxa de praticabilidade de episiotomias entre os 10% e os 15%, esta taxa de deixou de vigorar, significando isto que a Organização Mundial de Saúde desencoraja a realização deste procedimento.
Não obstante o surgimento destas novas recomendações, a realidade é que a episiotomia é prática recorrente nos hospitais portugueses no âmbito dos partos vaginais (2). Em Portugal, a taxa de episiotomias ultrapassa os 70% (3) constatando-se que assume o caráter de prática rotineira nos hospitais portugueses, diversamente do recomendado pela Organização Mundial de Saúde.
Assim, a episiotomia é, segundo estas recomendações, uma prática de mutilação genital feminina. Esta afirmação encontra eco na literatura médica sendo a episiotomia tida como uma moderna forma de mutilação genital feminina (4), sendo certo que quando se fala em mutilação genital feminina a associação deste termo à episiotomia não parece evidente, relegando-se este conceito aos rituais de purificação existentes em certas culturas africanas.
Podemos inclusivamente ler entre a literatura médica que:“A episiotomia é um procedimento cirúrgico quase universal que foi introduzido na prática clínica sem evidência científica que suportasse o seu benefício. O seu uso continua a ser rotineiro apesar de não cumprir a maioria dos objetivos pelos quais é justificado, isto é, não diminui o risco de lesões perineais severas, não previne o desenvolvimento de relaxamento pélvico e não tem impacto sobre a morbilidade ou mortalidade do recém-nascido.” (5) No entanto, esta prática foi largamente difundida entre a comunidade médica à escala mundial nos anos 20 do século passado (6).
Na literatura médica é possível perceber que a formação académica tem um forte papel na prática da episiotomia “Culturalmente, não realizá-la é sinónimo de má assistência obstétrica no Hospital.” Assim, faz-se necessária a reeducação dos profissionais de saúde por forma a reverter o cenário atual das episiotomias de rotina e prestar uma assistência mais humanizada e personalizada que as parturientes requerem (7).
Relativamente à mutilação genital feminina, este crime foi recentemente autonomizado no Código Penal Português na sequência da trigésima oitava alteração ao Código (datada de 2015), que originou a introdução do artigo 144ºA com vista à integração da Convenção de Istambul no ordenamento jurídico português.
O surgimento deste preceito na ordem jurídica portuguesa não veio suprir qualquer lacuna existente, pois a punição da mutilação genital feminina recaía antes no âmbito de aplicação do crime de ofensa à integridade física grave. O bem jurídico em causa tutelado é mais complexo do que a integridade física, alongando-se à integridade psíquica/mental e sexual das mulheres, não estando em causa a tutela exclusiva do aparelho genital feminino. Com a autonomização da penalização da mutilação genital feminina, o legislador teve como objetivo chamar à atenção para o bem jurídico em causa, para conseguir um efeito dissuasor e aumentar a moldura pena subjacente (8).
Numa primeira leitura este preceito estará (apenas) vocacionado para os casos de mutilação genital feminina motivados culturalmente que são geralmente perpetrados pelas comunidades imigrantes em Portugal, parecendo a episiotomia, mais concretamente a episiotomia de rotina, excluída do âmbito de aplicação deste artigo, pois o preceito retira do seu âmbito de aplicação “qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino por razões não médicas”, parecendo excluir as intervenções médicas em torno do aparelho genital feminino realizada por profissionais de saúde, como é o caso da episiotomia de rotina. A questão que se coloca é : será que podemos aqui enquadrar a episiotomia neste preceito (artigo 144º A do Código Penal)? Será que a episiotomia de rotina é realizada por razões não médicas?
Vejamos:
A episiotomia trata-se de uma incisão na zona do períneo destinado a ampliar o canal de parto aquando a expulsão do feto do canal de parto (9). É equiparada a uma laceração de grau 2 (10), pelo que pode apresentar perigos/danos significativos para a mulher por afetar músculos, vasos sanguíneos e nervos. A episiotomia para além de ser um procedimento invasivo, de aceleração do parto, é narrado como sendo desconfortável, sendo que muitas mulheres se sentem efetivamente violadas, violentadas e mutiladas com esta prática. Algumas mulheres sentem dores nas relações sexuais após este procedimento e outras desenvolvem infeções.
É comum recorrer-se à episiotomia tendo como justificação, a prevenção de lacerações ou a ameaça de lacerações de terceiro/ou quarto grau no canal de parto (que são raras). Porém, as lacerações espontâneas (as que decorrem do parto, sem qualquer intervenção) cicatrizam melhor e têm uma menor taxa de infeções associadas, comparativamente à episiotomia, pelo que o argumento anteriormente exposto não é de acolher (11).
Aliás, apontam-se danos importantes para a saúde da mulher advindos da realização da episiotomia: perdas de sangue em maior quantidade, aumento da dor pós-parto, dano perineal efetivo e possibilidade de desenvolvimento de infeções associadas à episiotomia (12). São ainda complicações da episiotomia: hematomas, roturas de períneo de grau III e IV, celulite, deiscência, fístula rectovaginal, lesão do nervo pudendo, fasceíte necrosante, e mesmo, morte (13).
Assim, tendo em conta o supra exposto é de concluir que a episiotomia de rotina não tem razões médicas subjacentes pelo que se enquadra no campo de aplicação do artigo 144º A do Código Penal.
Atendendo aos tipos de mutilação genital feminina existentes, a episiotomia não se reconduz à clitoridectomia (Tipo I – remoção total ou parcial do clítoris), à excisão (Tipo II) ou à infibulação (Tipo III) enquadrando-se na última espécie de mutilação genital prevista no artigo “qualquer outra prática lesiva do aparelho genital feminino” e que se trata de uma categoria residual por forma a abranger todos os atentados perpetrados em volta do aparelho genital feminino (14).
Por vezes, a episiotomia não tem impacto na saúde sexual da mulher, mas não deixa de ser um atentado ao seu bem-estar físico e mental, constituindo uma violação do direito à integridade física/direito à sexualidade e mesmo, da sua dignidade em casos extremos.
Consideramos assim que não poderemos ter em conta o artigo 144º A do Código Penal apenas para os rituais culturais, mas a todas as situações que tenham subsunção nesta norma, sendo de abranger também a episiotomia de rotina. A mutilação genital feminina independentemente da forma que revista representa uma violação de direitos fundamentais das mulheres, dos seus direitos humanos básicos (o direito à integridade física – direito à saúde e/ou à sexualidade ou saúde sexual e mental).
(1) Disponível em https://www.who.int/
(2) http://www.associacaogravidezeparto.pt/wp-content/uploads/2016/08/Experiências_Parto_Portugal_2012-2015.pdf
(3) http://www.associacaogravidezeparto.pt/wp-content/uploads/2016/08/Experiências_Parto_Portugal_2012-2015.pdf
(4) Melania Amorim e Leila Katz, O papel da episiotomia na obstetrícia na moderna, in Femina 36 (1): 47-54, Janeiro 2008, página 47
(5) Episiotomia – uso generalizado versus seletivo, BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDA PEREIRA Serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Maternidade Dr Alfredo da Costa. Lisboa, ACTA MÉDICA PORTUGUESA 2003; 16: 447-454, p.447
(6) Melania Amorim e Leila Katz, O papel da episiotomia na obstetrícia na moderna, in Femina 36(1): 47-54, Janeiro 2008, página 48
(7) Sónia Junqueira et AL, Frequência e critérios para indicar a episiotomia, Revista de enfermagem da Universidade de São Paulo, 2005, volume 39 nº3 p.288-295, página 289-294
(8) Mário Ferreira Monte, Mutilação Genital, Perseguição (STALKING) e Casamento Forçado: Novos tempos, Novos crimes…, in Julgar Nº28, 2016, página 83
(9) Borges B., Serrano F., Pereira F, Episiotomia: uso generalizado versus seletivo, in Ata Médica Portuguesa, Lisboa, Fevereiro 2003 (16) 447-454
(10) Episiotomia – uso generalizado versus seletivo, BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDA PEREIRA Serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Maternidade Dr Alfredo da Costa. Lisboa, ACTA MÉDICA PORTUGUESA 2003; 16: 447-454, p.449
(11) Episiotomia – uso generalizado versus seletivo, BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDA PEREIRA Serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Maternidade Dr Alfredo da Costa. Lisboa, ACTA MÉDICA PORTUGUESA 2003; 16: 447-454, p.449
(12) Melania Amorim e Leila Katz, O papel da episiotomia na obstetrícia na moderna, in Femina 36(1): 47-54, Janeiro 2008, página 49 e 50
(13) Episiotomia – uso generalizado versus seletivo, BÁRBARA BETTENCOURT BORGES, FÁTIMA SERRANO, FERNANDA PEREIRA Serviço de Ginecologia e Obstetrícia. Maternidade Dr Alfredo da Costa. Lisboa, ACTA MÉDICA PORTUGUESA 2003; 16: 447-454, p.452
(14) Mário Ferreira Monte, Mutilação Genital, Perseguição (Stalking) e Casamento Forçado: Novos tempos, Novos crimes…, in Julgar Nº28, 2016, página 76
Vânia Simões ~ advogada; associada efetiva da APDMGP
Excelente informação que deve ser divulgada entre as mulheres!