Certas pessoas, sem o saberem, moldam o nosso destino. Pessoas cujas escolhas ou percurso de vida reclamamos como nossos. As suas histórias são as nossas histórias. Dentro da sua imagem encontramos a nossa própria face.
A história dos Direitos das Mulheres no Parto é bastante recente. Ainda estamos como que a apalpar terreno no que toca a reivindicar o que acontece com o nosso corpo quando gestamos e damos à luz. É preciso coragem para admitirmos que não tivemos uma experiência de parto feliz, que nos sentimos maltratadas, enganadas, que estamos física e/ou emocionalmente magoadas. E, mesmo depois de angariarmos essa coragem e força, muitas vezes não acreditam em nós. Não há ninguém que nos diga “o que fizeram contigo não está certo”. Muito menos quem tome responsabilidade pelo que fez.
É curioso, mas a verdade é que a grande maioria das mulheres que se queixa e contacta a Associação, apenas quer um pedido de desculpas. Apenas quer aquele reconhecimento de que alguém errou, e não as tratou bem. Esse pedido de desculpas nunca acontece. E aí sim, decidem partir para queixas formais, tribunais, etc. Porque quando nos sentimos injustiçadas, precisamos de continuar a procurar quem nos ouça. Alguém que reconheça a violência que foi feita contra nós e de alguma forma responsabilize quem tem de ser responsabilizado. Faz parte do sarar dessas feridas e de se poder iniciar finalmente o processo de cura.
Hoje trago-vos a voz de 4 mulheres que não descansaram até serem ouvidas. E quem (finalmente) as ouviu foi o Tribunal Europeu de Direitos Humanos. As suas histórias são parecidas com as tantas, tantas outras que andam aí. De violência no parto e falta de escolhas. Podia ser a história da Carina, da Laura, da Susana, etc, etc, etc, as histórias são mais que muitas….
Estas são as histórias da Anna, da Šárka, da Alexandra e da Yevgeniya. As mulheres que fizeram jurisprudência no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
Em 2010, Anna Ternovszky queixou-se do seu país, a Hungria, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, num caso sem precedentes relativamente ao direito da mulher de escolher as circunstâncias em que dá à luz. Esta foi a primeira vez que o Tribunal levou em consideração um caso que tivesse a ver com o parto, e o impacto deste julgamento ainda hoje se faz sentir, pois demonstra como é que, em termos práticos, os meandros dos Direitos Humanos Internacionais podem ser usados para fortalecer, clarificar e proteger os Direitos no Parto. Sendo pioneiro, encorajou outros casos nos anos seguintes. No momento da queixa feita ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Anna Ternovszky estava grávida e pretendia dar à luz em casa, e não num hospital ou casa de parto. Contudo, tendo em vista o disposto no n.º 2 do artigo 101.º do Decreto do Governo n. 218/1999 (XII.28.), na lei Húngara, qualquer profissional de saúde que prestasse assistência a um parto domiciliar corria o risco de condenação por infração regulatória e, na verdade, pelo menos uma dessas acusações havia ocorrido nos últimos anos, com a prisão da parteira Agnés Gereb. Na opinião de Anna Ternovszky, embora não existisse uma legislação abrangente sobre o nascimento domiciliar na Hungria, esta disposição efetivamente desencorajava os profissionais de saúde de atender as mulheres e casais que desejavam parir em casa.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decretou que as mulheres tinham o direito de escolher dar à luz em casa, e que o Estado era obrigado a assegurar que os profissionais que as atendiam o pudessem fazer sem medo de sanções criminais, civis ou disciplinares:
“O Tribunal considera que, quando as escolhas relacionadas com o exercício do direito ao respeito da vida privada ocorrem numa área legalmente regulamentada, o Estado deve proporcionar uma proteção jurídica adequada ao direito no regime regulamentar, nomeadamente assegurando que a lei seja acessível e previsível, permitindo aos indivíduos regularem a sua conduta em conformidade. É verdade que, a este respeito, o Estado tem uma ampla margem de apreciação; no entanto, o regulamento deve garantir um equilíbrio adequado entre os interesses da sociedade e o direito em jogo. No contexto do nascimento domiciliar, considerado como uma questão de escolha pessoal da mãe, isso implica que a mãe tem direito a um ambiente legal e institucional que permita a sua escolha, exceto quando outros direitos tornam necessária a sua restrição.”
Dubská e Krejzová vs República Checa
Šárka Dubská e Alexandra Krejzová foram mais duas mulheres que recorreram ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos para se queixarem do seu país, a República Checa, onde sentiam que os seus direitos fundamentais não estavam a ser respeitados. Dubská entrou com o seu pedido em 4 de maio de 2011 e Krejzová em 7 de maio de 2012. Dubská e Krejzová alegaram que a lei checa não permitia aos profissionais de saúde participar em partos domiciliares, em violação do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que diz que:
“Direito ao respeito pela vida privada e familiar
- Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.
- Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros.”
Šárka Dubská deu à luz ao seu primeiro filho no hospital em 2007, sem complicações. Segundo ela, durante o parto, o pessoal médico presente a coagiu-a a submeter-se a vários tipos de intervenção médica, mesmo quando expressou o seu desejo de não ser submetida a nenhuma intervenção desnecessária. Foi também forçada a dar à luz numa posição que não lhe era confortável. Queria também ter saído do hospital algumas horas após o nascimento, visto que tanto ela como o bebé estavam bem, mas um médico decidiu que deveria ficar no hospital mais tempo. Em 2010, quando engravidou outra vez, visto os exames todos indicarem ser uma gravidez de baixo risco e, ainda traumatizada com a sua experiência anterior de parto, decidiu dar à luz em casa e procurou uma parteira para assistir. No entanto, não conseguiu encontrar nenhuma profissional que a pudesse assistir em casa. As parteiras registadas na Ordem tinham apenas permissão para assistir a partos em instalações que possuíssem o equipamento técnico exigido a uma unidade obstétrica, e não numa casa particular. Não tendo encontrado nenhum profissional de saúde para a apoiar, Dubská deu à luz ao seu filho sozinha em casa a 11 de maio de 2011.
Alexandra Krejzová era mãe de duas crianças nascidas em casa em 2008 e 2010 com a ajuda de uma parteira. As parteiras participaram nestes partos sem autorização do Estado. Antes de decidir dar à luz em casa, visitou vários hospitais, que recusaram os seus pedidos de não ter intervenção médica desnecessária e o seu desejo de contato ininterrupto com o bebé depois deste nascer, pois a prática hospitalar era que a criança fosse levada para longe da mãe imediatamente após o nascimento para ser pesada, medida e para uma observação médica adicional durante um período de duas horas.
Quando engravidou outra vez, e estando a gestação a decorrer sem complicações, Alexandra pretendia mais uma vez dar à luz em casa com uma parteira. No entanto, não conseguiu uma profissional para lhe prestar assistência por causa do risco de uma multa pesada se praticasse sem autorização. Ela recorreu a várias autoridades para a ajudar a encontrar uma solução. O Ministério da Saúde respondeu que não fornecia serviços médicos de forma individualizada. A 7 de Maio de 2012, ela deu à luz numa maternidade em Vrchlabí, a 140 km de Praga. Tinha escolhido este hospital devido à sua reputação de respeitar os desejos das mães durante o parto. No entanto, segundo Alexandra, separam-na do seu bebé, apesar de tanto ela como ele estarem saudáveis, teve de permanecer no hospital por 72 horas após o parto e cortaram o cordão umbilical da criança imediatamente após o nascimento, apesar dos seus desejos em contrário.
Em novembro de 2016, o Tribunal reafirmou que os direitos das mulheres no parto são protegidos pelo artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sublinhando ainda mais as proteções dos direitos humanos que as mulheres portadoras da vida devem desfrutar:
“Consideramos que o modelo de nascimento de opção única previsto pela legislação checa em questão, que deixa às mulheres grávidas pouca escolha que não a de dar à luz no hospital, é de facto problemática no que diz respeito ao Artigo 8 da Convenção. Impedir que as mulheres deem à luz em casa, principalmente com gravidezes de baixo risco, não é na nossa opinião justificada numa sociedade democrática por qualquer convincente argumento de saúde pública.”
Numa manhã de abril de 1999, Yevgeniya Konovalova, grávida de 40 semanas e com contrações, foi levada de ambulância para o Hospital da Academia Médica Militar S. M. Kirov. Após a sua admissão, foi-lhe entregue um folheto informativo que entre outras coisas avisava as parturientes de que era expectável que fizessem parte do ensino clínico visto aquele ser um hospital de ensino. O aviso dizia:
“Pedimos que respeite o fato de que os cuidados médicos no nosso hospital são combinados com o ensino aos estudantes de obstetrícia e ginecologia. Nesse sentido, todas as pacientes estão envolvidas no processo de ensino “.
Yevgeniya foi examinada por um médico, que estabeleceu que estava grávida de quarenta semanas e que havia complicações com a gravidez pois tinha um caso leve de polihidrâmnios (excesso de líquido amniótico). O médico declarou que as suas contrações eram prematuras (às 40 semanas!) e que estava a sofrer de fadiga. Foi posta a dormir com medicação durante duas horas. Quando voltou, o médico estabeleceu novamente que as contrações eram prematuras e prescreveu um medicamento para parar o trabalho de parto e suprimir o “parto prematuro”. Yevgeniya foi depois informada de que o seu parto estava programado para o dia seguinte e que seria assistida por estudantes de medicina. Estavam desde o início a adiar o seu parto para este poder ser assistido pelos estudantes. Nessa noite, foi novamente posta a dormir com drogas. Na manhã seguinte, a frequência e intensidade das suas contrações aumentaram. Os médicos encontraram vestígios de mecónio no líquido amniótico, o que indicava que havia um risco de que o feto sofresse de hipóxia. Prescreveram-lhe um medicamento para melhorar o fluxo sanguíneo da placenta. Às 9 da manhã, os médicos examinaram-na e disseram que o estado de saúde de mãe e bebé estava satisfatório e que o parto seria vaginal. Yevgeniya afirma que se opôs à presença de médicos internos durante a expulsão, que aparentavam até já saber do seu quadro clínico e dos exames a que tinha sido sujeita. Durante a expulsão, os médicos realizaram uma episiotomia. O bebé foi diagnosticado com uma asfixia leve, e foi transferido para a unidade de cuidados neonatais, de onde só saiu 3 semanas depois, data em que Konovalova levou o seu filho para casa.
Mais uma vez, o artigo 8 da Convenção foi invocado, devido à presença não consentida de estudantes no parto, e Yevgeniya Konovalova ganhou o caso, que fez jurisprudência. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decretou que a lei russa não continha mecanismos suficientes para decidir pela proteção das utentes de interferências na sua vida privada. Não estava previsto legalmente um procedimento que garantisse o consentimento das pacientes em relação a tratamentos a que iam ser submetidas, e a informação do hospital sobre a presença de estudantes era “vaga” e não especificava o envolvimento que estes teriam nas intervenções médicas.
“O Artigo 8º inclui a integridade física de uma pessoa, sendo o corpo de alguém a parte mais íntima da sua vida privada, as intervenções médicas, mesmo que as considerem como sendo de pouca importância, constituem uma interferência com este direito.”
O que nos ensinam estes casos relativamente aos Direitos no parto? Que vale sempre a pena. Contar a história, fazer a queixa, e não descansar até que encontremos quem ouça e reconheça a nossa história. Estas quatro mulheres ensinaram-nos que não, não estamos sozinhas.
Afinal de contas, em que Mundo preferimos viver? O Mundo como ele é ou o Mundo como este deveria ser? Neste Dia Internacional da Mulher, que estas mulheres te inspirem a reconheceres a tua voz, e a não teres medo de a usar.
Sara do Vale ~ doula e associada fundadora da APDMGP
Imagem: Lady Justice under Fire, Day Williams