As mulheres costumam falar do seu parto. De forma mais ou menos voluntária, em contextos diferentes, é notável como não se esquecem do que aconteceu naquele dia, por mais tempo que tenha passado. O que se passou, quem estava lá, como se sentiram. Infelizmente, muitas dessas histórias têm, em algum ponto (ou grande parte) do enredo, exemplos de falta de respeito, coisas que a mulher não sabia o que eram, “chatices” ou mesmo trauma. Quase todas as histórias têm traços de violência obstétrica. Algumas ainda choram ao contar. Outras sentem-se zangadas. Outras encolhem os ombros e acrescentam um apressado “pronto, teve de ser.” A culpa e a ideia de que de alguma forma elas é que não estiveram “à altura” aparece em comentários como eu não dilatei. Ou eu não estava a saber fazer força suficiente nem no sítio certo. Como em quase todas as formas mais perversas de violência, a vítima culpa-se, seja por não ter sabido o que fazer seja porque, apesar de conseguir identificar que o que lhe estavam a fazer não era certo, na altura não teve forças para “lutar”, “dizer não”, e não fez queixa porque não valia a pena, só queria esquecer.
Mas afinal o que é a Violência Obstétrica?
Violência Obstétrica é a violência estrutural exercida sobre as mulheres no contexto da assistência à pré conceção, procriação medicamente assistida, gravidez, parto e pós-parto. Inclui: recusa de tratamento, negligência em relação às necessidades e queixas da mulher, humilhações verbais, violência física, práticas invasivas, uso desnecessário de medicação, intervenções médicas forçadas e não consentidas, desumanização ou tratamento rude, entre outras manifestações. A violência obstétrica não é exclusiva da experiência de mulheres que têm partos complexos. Nem das que têm partos hospitalares. Nem das que têm gravidezes classificadas como sendo de risco. E pode acontecer tanto no sistema público como no privado. As cicatrizes físicas e emocionais que ficam são muitas, e profundas.
O questionário realizado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (www.associacaogravidezeparto.pt), intitulado “Experiências de Parto em Portugal 2015-2019”, procurou aferir a perceção das mulheres com a sua experiência de parto.
Os resultados do inquérito revelam existir uma relação estatisticamente significativa entre a perceção de controlo das mulheres e a sua satisfação relativamente ao parto. Quanto maior é o sentimento de controlo das mulheres, maior é a satisfação. Este sentimento de controlo não significa, no entanto, que tudo tenha corrido “como esperado”. Significa que as mulheres foram envolvidas no processo, estiveram em comunicação com a equipa, a par do que ia acontecendo, e foram consultadas a cada passo sobre as decisões relativas ao seu corpo e ao seu bebé.
A investigação científica indica que as experiências de parto acompanham a mulher ao longo da vida, com impacto em áreas importantes como a autoestima e as relações familiares, particularmente entre ela o/a parceiro/a e ela e o bebé (Lundgren, I. 2002, p. 21).
A vagina no parto desrespeitado
Podíamos aqui fazer uma lista exaustiva das várias intervenções desnecessárias e nada isentas de risco a que as mulheres em Portugal ainda são sujeitas de forma rotineira durante a sua gravidez e parto. No entanto, gostaríamos “apenas” de nos focar no que acontece à vagina das mulheres durante esse período. Comecemos pela episiotomia. A episiotomia é um corte intramuscular que é feito na altura da expulsão do bebé com o (suposto) intuito de alargar o canal de parto. A Organização Mundial de Saúde retirou em 2018 a anterior percentagem de recomendação de 15% de episiotomia das suas Recomendações Intraparto para uma Experiência Positiva de Nascimento (https://www.who.int/reproductivehealth/publications/intrapartum-care-guidelines/en/). A episiotomia não é recomendada em circunstância alguma. No entanto, a taxa de episiotomia em Portugal ronda os 70%, sendo das taxas mais altas da Europa. Só o Chipre, a Polónia e a Roménia nos acompanham nestes números vergonhosos. Serão as vaginas portuguesas assim tão “incompetentes”? Não, de todo. A verdade é que esta é uma intervenção que demonstra a cultura da pressa no parto. E uma consequência de um parto já de si muito “mexido” com intervenções desnecessárias, feitas numa mulher que está deitada de costas, provavelmente com as pernas para cima (posição que torna a sua bacia mais estreita e o seu cóccix menos móvel, o que dificulta e muito a expulsão do bebé). A episiotomia está associada a maior dificuldade na recuperação pós-parto, aumenta o risco de complicações nesse período e afeta a autoestima da mulher, dificultando, entre outras coisas, o retorno à vida sexual. Não há evidência de que a episiotomia traga melhores resultados clínicos, nem para a mãe, nem para o bebé. (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5449575/ )
Outro exemplo claro de violência e desrespeito são os “toques”. “Toque” é o termo corrente para denominar o exame vaginal, feito muitas vezes apenas por rotina, no contexto da assistência à gravidez e ao parto. O/a profissional de saúde insere dois dedos dentro da vagina da mulher, com o intuito de determinar o grau de dilatação do colo do útero, se está apagado ou não, a posição do bebé e o quão fundo está em relação à pélvis da mãe. No entanto, a verdade é que o exame vaginal não permite adivinhar o futuro. Apenas define como está o colo do útero naquele preciso momento. Para além do mais, não há evidência de que os toques vaginais produzam melhores resultados, quer para mães, quer para bebés (https://www.cochrane.org/CD010088/routine-vaginal-examinations-in-labour) e até já se chegou à conclusão de que a dilatação do colo do útero durante o parto fisiológico é algo impossível de se prever, pois não segue uma dinâmica linear (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/26230291). Muitas mulheres sentem que os toques vaginais são invasivos, desconfortáveis ou mesmo dolorosos. E será que já parámos para pensar se aquela mulher tem um historial de abuso sexual e que este “toque” pode desencadear memórias traumáticas? Tem ainda alguns riscos associados, nomeadamente, a introdução de agentes patogénicos no corpo da mulher. Em nenhum outro contexto da vida, é considerado normal que alguém insira os dedos dentro da vagina de uma mulher sem esta saber para quê, porquê e o consentir. Em qualquer outra situação, isso seria considerado uma violação. Porque é que isso muda quando ela está grávida ou em trabalho de parto? Um sistema onde a vagina das mulheres é rotineiramente cortada e “tocada”, sem que esta saiba que pode recusar, é um sistema disfuncional.
Taxa de mortalidade materna – os números já falam por si
Portugal sempre se gabou da sua baixa mortalidade perinatal para justificar o facto das nossas taxas de intervenção serem quase todas bastante acima das médias europeias e das recomendações da Organização Mundial de Saúde. No entanto, segundo dados da Pordata, a taxa de mortalidade materna tem vindo a registar uma subida consistente e acentuada (https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+mortalidade+materna-619). Somos, atualmente, o quarto pior país da Europa no que toca à mortalidade materna. Agora que os números falam por si, talvez esteja na altura de perguntar “a sério” porque é que as mulheres portuguesas estão a morrer no parto.
Feminismo e os Direitos no Parto
Por que é que, então, sendo a experiência de gravidez e parto algo que tantas mulheres experienciam, este parece ser um terreno ainda um pouco esquecido pelo feminismo? Esta é, na verdade, a questão feminista por excelência: grande parte das discriminações a que as mulheres estão sujeitas advém desta sua capacidade de gestar, parir e nutrir uma criança. Mesmo que a mulher esteja focada noutra direção e ter filhos não faça parte dos seus planos. Está na hora de abordarmos estas problemáticas pela lente feminista, que não aceita que a violência seja rotina pois “o médico é que sabe” (haverá coisa mais patriarcal do que isto?).
É verdade que esta luta pelos direitos das mulheres no parto foi, durante muito tempo, enquadrada principalmente pela retórica do parto “natural”, o que pode ter contribuído para que muitas mulheres não se tenham sentido representadas. No entanto, os direitos humanos durante a preconceção, procriação assistida, gravidez, parto e pós-parto são universais e independentes das escolhas pessoais ou do parto seguir o curso esperado. O seu reconhecimento não deveria estar sujeito a nenhuma filosofia particular. E, por isso e por muito mais, precisamos de nos unir. De estarmos todas juntas nesta missão. A mulher que quer parir de forma completamente fisiológica, sem intervenções desnecessárias e “drogas”. A mulher que quer uma cesariana. A mulher que quer amamentar. A mulher que quer dar biberão. E todas as sombras de cinzento no meio.
Temos de repensar o nosso modelo de cuidados, que atualmente tanto desempodera, desrespeita, infantiliza e magoa as mulheres. Temos de passar a um modelo em que seja claro que a dignidade, autonomia e autodeterminação não ficam esquecidas. As mulheres viverão com as consequências do que lhes é feito no período de gestação e no parto para o resto da sua vida. Não podemos permitir que um dos dias mais significativos da sua vida se torne num pesadelo. Vamos partir do princípio de que as mulheres sabem o que é melhor para si. As mulheres têm capacidade e inteligência para saber o que querem ou não que aconteça com o seu corpo. Não são uma mera incubadora daquele bebé.
A lei e a evidência científica já estão alinhadas com a ideia de que o respeito é essencial, que as mulheres devem ser envolvidas nas tomadas de decisão e que são soberanas no que toca ao que acontece com o seu corpo. Então… o que falta? Falta mudar a cultura vigente do parto. Falta um sistema que considera as mulheres as reais protagonistas do evento do nascimento, em que elas são informadas da real necessidade de cada intervenção, sem omissões ou informação tendenciosa. Falta que nos apoiemos umas às outras, cada vez mais. Longe da frase “tudo o que importa é um bebé saudável”, é preciso dizer às mulheres “tens razão. O que fizeram contigo não está certo. Eu acredito em ti.” Porque o trauma e a vergonha se dissipam, quando as histórias são contadas em lugares seguros e livres de julgamento. A normalização da violência é, em si mesma, violência. Quebremos o ciclo de violência contra a mulher, hoje, Dia Internacional da Mulher, e todos os outros dias.
P´la Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.