Carta aberta ao (novo) Ministro da Saúde

Exm.º Sr.º Ministro da Saúde, Dr. Manuel Pizarro,

Foi com preocupação que recebemos, através dos meios de comunicação social, a notícia da proposta do fecho do serviço de urgência de obstetrícia e ginecologia de vários hospitais em diversos locais do país, alegadamente proposta pela Comissão de Acompanhamento das Urgências Obstétricas, que tem em mãos a tarefa de resolver a crise nos serviços de obstetrícia que assola o nosso Serviço Nacional de Saúde há muitos anos e que se deteriorou com a pandemia, atingindo o ponto de ruptura durante os meses de Verão. Compreendendo a lógica de se concentrarem recursos, gostávamos, no entanto, de desafiar a tutela a considerar outras soluções. Sendo a proximidade das grávidas à urgência médica considerada, pela evidência, uma medida base de segurança para mães e bebés, será também preciso ter em conta que o fecho de alguns serviços poderá traduzir-se na sobrecarga dos locais que persistirem, privando as mulheres e pessoas grávidas de serviços e maternidades essenciais ou agravando consideravelmente essas distâncias, em particular no centro do país. 

Gostaríamos de compreender melhor os critérios que presidiram à indicação do fecho destas urgências em particular. Surpreende-nos o facto de, entre as maternidades propostas, estarem aquelas que têm dado provas de um esforço, dedicação e investimento no sentido de se alinharem com a evidência científica, a legislação e a vontade das mulheres na busca por partos humanizados e respeitados, com resultados muito positivos. É primordial que, na avaliação determinante das recomendações, não se considerem apenas números de partos e localização geográfica, e que também sejam tidos em conta indicadores como as taxas de cesariana, taxas de parto eutócico, taxas de episiotomia e outras intervenções feitas por rotina, desaconselhadas pela Organização Mundial da Saúde e pela mais recente evidência, assim como os níveis de satisfação das mulheres e suas famílias. A consideração destes critérios é fundamental para um evento fisiológico como o parto, devendo estes critérios estar sempre incluídos na fundamentação de decisões que alterem significativamente as políticas públicas e a produção de cuidados  de saúde materno-infantil, como é o caso. Contudo, exatamente por a evidência científica demonstrar que há partos e gravidezes de risco, com eventos patológicos que carecem de intervenção, é ainda mais surpreendente que a alegada proposta da Comissão de Acompanhamento seja a de reduzir a rede de maternidades, ao invés de a expandir.

O acesso aos cuidados de saúde constitui um direito humano. As grávidas e suas famílias merecem ser bem tratadas e estar fora de perigo, ter acesso à informação, consentimento informado ou recusa informada e respeito pelas suas escolhas e preferências. Têm ainda direito à privacidade e confidencialidade, a serem tratadas com dignidade e respeito, à igualdade no tratamento e não discriminação. Todas as pessoas têm o direito à liberdade, autonomia, autodeterminação e a estarem livres de coação, como decorrente do respeito pela dignidade da pessoa humana, que cabe ao Estado garantir. Como desproteger as pessoas e famílias num dos momentos de maior vulnerabilidade das suas vidas, quando se nasce e quando se pare? 

Infelizmente, o desinvestimento sucessivo no Serviço Nacional de Saúde faz com que, atualmente em Portugal, o direito básico de acesso aos cuidados de saúde não esteja plenamente garantido. 

A Lei n.º 110/2019, de 9 de setembro, que estabelece os princípios, direitos e deveres aplicáveis em matéria de proteção na pré-concepção, na procriação medicamente assistida, na gravidez, no parto, no nascimento e no puerpério, está longe de se consagrar realmente. O fecho de serviços de urgência de obstetrícia e ginecologia vai agudizar este problema, tendo como consequência a centralização e despersonalização dos cuidados, desmembrando serviços cuja excelência e impacto positivo na comunidade circundante (e não só) será irremediavelmente perdido. 

Alertamos ainda para o facto de uma medida desta natureza vir a aprofundar assimetrias socioeconómicas, alargando o fosso entre quem pode e quem não pode (arcar com os custos), com consequências graves para as populações mais vulneráveis. 

Este é um problema estrutural e profundo, que não se vai resolver fechando portas. 

Deixamos abaixo algumas recomendações. 

A nível político, recomendamos:

● Um efetivo investimento no Serviço Nacional de Saúde, assegurando a oferta de serviços de saúde de qualidade em todo o território nacional, de forma universal e gratuita. 

● A promoção do respeito pelos direitos humanos dos utentes, quer no Serviço Nacional de Saúde quer no sistema privado. 

● Considerar, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, outros modelos de assistência ao nascimento para mulheres com gravidez de baixo risco, assim como a inclusão de outras opções de locais de nascimento, como, por exemplo, Unidades de Cuidados de Maternidade integrados numa rede de assistência mais alargada, otimizando a continuidade dos cuidados e respeitando o parto como um evento fisiológico. Neste sentido, e à luz da proposta do fecho de maternidades, considerar-se por exemplo, a proposta da Associação Portuguesa de Enfermeiros Obstetras de converter os serviços que estão para encerrar em UCMs, que pudessem servir as populações locais. 

● Assegurar o diálogo efetivo, sistemático e transparente entre sociedade civil, profissionais de saúde, instituições de saúde, Direção-Geral de Saúde e poder político, criando ou reativando comissões para o efeito. 

● Assegurar o acesso dos cidadãos e cidadãs aos dados relativos às intervenções durante o parto em cada instituição de saúde.

A nível das instituições de saúde, recomendamos:

● Garantir boas condições de trabalho das e dos profissionais de saúde, técnicos de diagnóstico e terapêutica e auxiliares de saúde, privilegiando vínculos laborais que garantam a segurança e bem-estar, em detrimento de esquemas contratuais que promovem a precariedade, a intermitência, a insegurança laboral e o desgaste pessoal.

● Monitorizar efetivamente o respeito pela legislação em vigor no que diz respeito aos direitos das utentes, quer do Serviço Nacional de Saúde quer nos sistemas privados. 

● Incluir, na monitorização da qualidade dos cuidados de saúde materna, indicadores que tenham em conta a experiência das mulheres e dos profissionais de saúde, inseridos em estratégias orientadas pela promoção e proteção dos direitos humanos. Neste âmbito, uma possibilidade é a utilização dos critérios definidos no documento “Mother–baby friendly birthing facilities initiative” (FIGO, 2015), com a inclusão de questionários de satisfação a mulheres e profissionais de saúde, entre outras estratégias.

● Providenciar formação e apoio a todos os profissionais de saúde sobre direitos humanos/direitos das mulheres na preconceção, gravidez e no parto.

● Possibilitar o acesso de profissionais de saúde a formação e métodos não farmacológicos de alívio da dor, bem como recursos e práticas que promovam o parto fisiológico.

● Assegurar o respeito pela lei do acompanhante e consentimento vigente, assim como o respeito pelas preferências expressas da mulher/casal.

● Assegurar que a evidência científica é sistematicamente integrada nas práticas, assim como tomar medidas para que procedimentos desnecessários, desatualizados ou prejudiciais sejam abolidos de protocolos e rotinas.

Aos profissionais de saúde, recomendamos:

● Assegurar que todas as intervenções durante a gravidez e o parto são precedidas de consentimento ou recusa informados livres e esclarecidos. 

● Assegurar que a sua prática de cuidados é baseada na evidência científica mais atual, procurando sempre dar resposta às necessidades individuais, assim como às preferências de cada mulher e casal.

A nível académico e da investigação, recomendamos:

● Incluir na formação dos profissionais de saúde (particularmente médicos e enfermeiros desta área) a abordagem de prestação de cuidados de saúde baseada em direitos humanos no contexto da saúde materna e infantil. 

● Desenvolver mais  investigação sobre a experiência das mulheres e dos profissionais de saúde na área da gravidez e parto, em particular sobre o impacto de intervenções na saúde e sobre violência obstétrica.

● Investigar e monitorizar a  forma como a evidência científica é incluída na prática de cuidados.

As nossas famílias, mães e bebés merecem muito mais. 

Pedimos, assim, uma reunião urgente para podermos discutir de viva voz estas preocupações com Vossa Excelência, pois é de extrema importância que a sociedade civil esteja sentada à mesa das tomadas de decisão que impactam a vida de tantas mulheres e famílias. 

13 de outubro 2022 – A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto