
Direitos humanos na gravidez, parto e puerpério & violência obstétrica – comunicação para a CEDAW
Introdução
A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) é uma associação sem fins lucrativos, criada em dezembro de 2014. A sua linha de ação e filosofia assentam na perspetiva de quem vive a gravidez e o parto em primeira mão: as mulheres/pessoas grávidas e as suas famílias. Durante os seus 10 anos de existência, a APDMGP realizou inquéritos, traduziu evidência, deu formação e apoiou as/os utentes no processo de tomada de decisões e reclamações nas maternidades portuguesas. Este documento dá conta da situação actual dos cuidados de saúde materna em Portugal.
I – Panorama geral dos cuidados obstétricos em Portugal
Apesar da aprovação da Lei nº 110/2019, de 9 de setembro, os cuidados de saúde materna e obstétrica, e de saúde reprodutiva em geral, degradaram-se após a pandemia de COVID 19, registando-se problemas desde logo no acesso aos cuidados de saúde, os quais não são equitativos, afetando particularmente mulheres que vivem no interior do país e nas Regiões Autónomas dos Açores.
Um dos fatores de maior preocupação atual é o fecho de muitas maternidades públicas o que representa um verdadeiro atentado à segurança das mães e bebés em Portugal.
A APDMGP tem vindo a alertar para o efeito lotaria a que as mulheres estão sujeitas no que respeita à assistência nos seus partos – um fator de desestabilização que é prejudicial à saúde das famílias e atenta contra os seus direitos humanos e contra a própria Lei Portuguesa. Esta situação, que acontecia de forma sazonal nos meses de Verão e Natal, devido à falta de profissionais de saúde nos serviços, passaram a ser permanentes em muitas maternidades. Esta situação veio agravar o estado de ansiedade e insegurança das mulheres relativamente aos seus processos reprodutivos, empurrando as famílias que possam fazê-lo, para os serviços de saúde privados, num ciclo vicioso de desinvestimento e diminuição da qualidade dos serviços prestados pelo SNS. Neste cenário de cuidados não assegurados e interrompidos, o privado acaba por oferecer a previsibilidade e continuidade de cuidados que as pessoas procuram. Mas como sabemos, é no privado que existem taxas mais elevadas de intervenções, nomeadamente cesarianas, com números que se encontram muito acima dos recomendados pela Organização Mundial de Saúde.
II – Dos dados relativos à Violência obstétrica
Apesar da Recomendação Geral nº 9 do Comité CEDAW, a violência obstétrica não tem sido devidamente documentada, não existindo dados oficiais sobre a sua ocorrência publicados por qualquer organismo estatal/público português, pese embora a Portaria nº 310/2016, de 12 de dezembro exija a publicação anual de diversos indicadores obstétricos que nos poderiam permitir a análise do panorama geral das práticas obstétricas em Portugal.
Posteriormente, em 2021, foi aprovada a Resolução nº 212/2021, de 12 de dezembro, que recomenda ao Governo o cumprimento da Portaria nº 310/2016, de 12 de dezembro, o que não se verifica até ao presente momento.
Além disso, a Lei nº 110/2019, de 9 de setembro, prevê a realização de inquéritos de satisfação às parturientes (artigo 9º A do mencionado diploma), cujos resultados são também eles desconhecidos do público.
III – Do acesso aos cuidados de saúde reprodutiva
A Entidade Reguladora da Saúde no relatório de setembro de 2023 ficaram patentes entraves burocráticos ligados ao acesso ao aborto (ERS, setembro de 2023) podem ser considerados uma forma de violência obstétrica de cariz institucional, na medida em que se interfere na autodeterminação reprodutiva da mulher/casal, violando assim um dos seus direitos reprodutivos basilar, quando a mulher se vê impedida de interromper a gravidez (IVG) por estar ultrapassado o prazo legal para o efeito, devido a questões burocráticas.[1]
O acesso a cuidados de saúde reprodutiva assume particular fragilidade na Região Autónoma dos Açores (ilha), em que as mulheres não têm acesso à IVG, e mais recentemente, a laqueação de trompas, ainda que dentro do quadro legal em vigor, tendo que deslocar-se ao Continente para o efeito, devido a todos os médicos da Região Autónoma se declararem objetores de consciência.[2]
Durante a pandemia registaram-se atrasos na realização de ecografias obstétricas, sobretudo na área metropolitana de Lisboa.
Tomamos ainda conhecimento de entidades privadas com acordos com o SNS que estavam a cobrar taxas ilegais no âmbito da realização das ecografias.
De referir ainda que inexplicavelmente, em outubro de 2023 se repôs oficialmente o direito ao acompanhamento em obstetrícia, sem nunca ter havido uma restrição legal para o efeito, mas que estava a ser sistematicamente violado pelos hospitais.[3]
O reconhecimento jurídico da violência obstétrica em Portugal ainda não se logrou até ao momento em razão da dissolução da Assembleia da República em novembro de 2021 e, mais recentemente em 2023, fazendo com que as iniciativas legislativas apresentadas para o efeito caduquem e tenham de ser novamente apresentadas para o efeito (projeto-lei nº 912/xiv/2 e projeto-lei nº 963/xv/2).
A ausência de previsão legal expressa desta forma de violência constitui um sério obstáculo no acesso à justiça por parte das vítimas, uma vez que os seus casos são julgados como se de negligência médica se tratassem, pondo sobre a vítima todos os encargos probatórios e taxas de justiça, uma vez que a sua condição de vítima não é reconhecida.
V – Casos noticiados de violações de direitos das mulheres
- Uma grávida de Torres Vedras fez mais de 170 quilómetros em trabalho de parto. Só foi assistida cinco horas depois dos bombeiros terem sido acionados, já numa unidade em Coimbra. O INEM diz que não havia maternidades mais perto. Fonte: https://sicnoticias.pt/pais/2024-07-17-video-gravida-em-trabalho-de-parto-fez-170-km-por-falta-de-maternidades-disponiveis-bc9db28c
- Uma jovem, de 26 anos, que estava grávida de nove meses de gestação, perdeu o bebé, dois dias depois de ter tido dores fortes e de ter procurado ajuda no Hospital de Cascais onde lhe terá sido dito que estava tudo bem com o feto e que poderia ir para casa. A unidade hospitalar nega que tenha havido negligência. Fonte: https://www.jn.pt/6367386567/gravida-perde-bebe-depois-de-ir-ao-hospital-de-cascais-com-dores-fortes/
- Uma mulher grávida que mora em Alcântara teve de ser transportada, no sábado, para o Hospital do Barreiro, que fica a 30 quilómetros de distância, segundo indicações do Centro de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), revelou a TVI. A Direção Executiva do SNS admitiu que, nestes dias, está a haver uma procura atípica. Fonte: https://www.jn.pt/4672384580/gravida-de-lisboa-teve-de-ser-assistida-a-30-quilometros-de-casa/
- Os hospitais da região de Lisboa estão a ter uma procura “atípica em termos de parturientes” este fim de semana, designadamente o Hospital de Loures, S. Francisco Xavier, Maternidade Alfredo da Costa e Hospital de Cascais, mas nenhuma urgência fechou, garantiu ao JN fonte da Direção Executiva do SNS. Fonte: https://www.jn.pt/4233327084/hospitais-de-lisboa-com-dificuldades-em-receber-gravidas-em-trabalho-de-parto/.
- Beatriz Cerca, de 20 anos, diz ter vivido uma experiência horrível no Hospital de Vila Franca de Xira (HVFX) e acusa a médica que a viu de agressividade. A mãe de Beatriz reclama por não ter sido autorizada a acompanhar a filha. O conselho de administração do HVFX ordenou a abertura de um inquérito. Fonte: https://omirante.pt/sociedade/2023-02-07-Gravida-queixa-se-de-violencia-obstetrica-no-Hospital-de-Vila-Franca-de-Xira-db182ae3
- Mulheres estão sem acesso à IVG no arquipélago. Já em 2022, quatro em cada cinco tiveram de ir a Lisboa. Fonte: https://expresso.pt/sociedade/saude/2023-11-03-E-um-caos-um-caos-nenhum-hospital-dos-Acores-faz-abortos-mulheres-forcadas-a-viajar-para-Lisboa-para-IVG-acf92db1
- Uma mulher de 32 anos, grávida de oito meses, soube na passada terça-feira, numa consulta no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, que a bebé estava morta e teria de remover o feto. Foi enviada para casa nesse e no dia seguinte por falta de vagas. Fonte: https://www.jn.pt/8419468854/hospital-manda-gravida-com-bebe-morto-para-casa-duas-vezes/
Pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto
30 de Julho de 2024
[1] Available at https://www.ers.pt/media/besglp0x/acessointerrupcaovoluntariagravidezsns110923.pdf .
[2] https://expresso.pt/sociedade/saude/2023-11-03-E-um-caos-um-caos-nenhum-hospital-dos-Acores-faz-abortos-mulheres-forcadas-a-viajar-para-Lisboa-para-IVG-acf92db1
[3] https://www.delas.pt/direito-ao-acompanhante-no-parto-reposto-apos-restricao-por-covid-19/atualidade/959792/