
Quantas mais mortes serão necessárias? – Verão 2025
A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) vem, mais uma vez, manifestar a sua profunda indignação e preocupação face à deterioração alarmante dos cuidados de saúde materna em Portugal.
Apesar de os sucessivos períodos de verão terem revelado esta crise de forma recorrente, o país parece não aprender com as experiências anteriores, continuando a reagir como se este problema não se agravasse ano após ano.
É inadmissível, do ponto de vista dos direitos humanos e da saúde pública, que as urgências obstétricas estejam fechadas e que os cuidados de saúde materna em Portugal se encontrem em claro processo de deterioração. O acesso a serviços de saúde seguros, contínuos, em tempo útil e de qualidade durante a gravidez, parto e pós-parto é um direito fundamental das mulheres, indispensável para garantir a sua integridade física, emocional e o direito à vida dos seus bebés. A negação ou a limitação desses cuidados configura uma violação grave dos direitos humanos e legislação nacional, e um fracasso inaceitável do sistema de saúde público, com consequências diretas e trágicas para a vida e bem-estar das mulheres/pessoas grávidas e das suas famílias.
Portugal, já viu com orgulho as suas baixas taxas de mortalidade materna e infantil, mas já não se pode vangloriar destes indicadores. Desde 2012, a mortalidade materna tem aumentado significativamente, com um pico em 2020, uma ligeira melhoria em 2021, seguida de novo aumento em 2022. As estimativas de 2023 confirmam a persistência deste grave problema. As causas são diretamente ligadas à crise na assistência obstétrica e às desigualdades existentes no sistema de saúde. Portugal é um dos nove países no mundo — incluindo EUA, Canadá e Grécia — que não registaram redução significativa na mortalidade materna entre 2000 e 2023, enquanto que os restantes alcançaram diminuições superiores a 70%. O aumento da idade materna, frequentemente invocado como justificação, não explica por si só este fenómeno. Embora o envelhecimento materno seja um fator de risco reconhecido, outros países europeus com perfis demográficos semelhantes mantêm taxas de mortalidade materna muito inferiores. Isto demonstra que o problema em Portugal é estrutural e sistémico, e não apenas demográfico.
Em 2024, assistimos também a um aumento da mortalidade infantil, que passou de 2,5‰ em 2023 para cerca de 3,0‰, o valor mais elevado dos últimos anos. Este agravamento está diretamente relacionado com a degradação dos cuidados maternos, marcada pelo encerramento de urgências obstétricas, carência de profissionais e insuficiente acompanhamento pré-natal, especialmente entre grávidas de risco ou em situação social vulnerável. A insuficiência de vigilância resultou como temos vindo a assistir, numa maior incidência de partos prematuros, baixo peso à nascença e fragilidade neonatal, refletindo falhas sistémicas graves na assistência materno-infantil.
Outro fator crítico, a nosso ver, prende-se com a falta de autonomia das Enfermeiras Especialistas em Saúde Materna e Obstetrícia em Portugal. Enquanto países como os Países Baixos, Suécia e Reino Unido conferem ampla autonomia às suas Enfermeiras Parteiras para acompanhar gravidezes de baixo risco e conduzir partos fisiológicos, em Portugal estas profissionais permanecem excessivamente dependentes da presença médica. Esta limitação prejudica a eficiência do sistema, sobrecarrega os serviços obstétricos e contribui para lacunas no acompanhamento das grávidas. É imperativo reforçar a autonomia clínica destas profissionais, adotando modelos europeus bem-sucedidos.
A crise obstétrica em Portugal está ainda enraizada numa falha estrutural dos cuidados de saúde primários, com a falta crónica de médicos de família. Muitas mulheres grávidas não têm acesso à vigilância pré-natal adequada desde o início da gestação, especialmente em áreas com carência de profissionais. Esta ausência compromete a deteção precoce de riscos, aumenta a dependência dos hospitais — já sobrecarregados — e cria rupturas nos serviços de urgência e maternidades. A fragilidade dos cuidados primários é, por isso, um dos principais motores da crise obstétrica nacional.
A adoção de modelos alternativos de nascimento, como as casas de parto, amplamente implementados e bem-sucedidos noutros países europeus, poderia representar um avanço significativo na melhoria dos cuidados de saúde materna em Portugal. Estes modelos, centrados na autonomia da mulher, no respeito pelas suas escolhas e na condução do parto fisiológico por parteiras e enfermeiras especialistas, oferecem um ambiente seguro, humanizado e menos medicalizado para gravidezes de baixo risco. Além de promoverem experiências de parto mais positivas, estas estruturas contribuem para a descongestão dos hospitais, permitindo que os recursos médicos sejam direcionados para os casos mais complexos. Integradas numa rede de cuidados bem articulada com os serviços hospitalares, as casas de parto representam uma resposta eficaz, baseada em evidência, que valoriza a saúde pública, os direitos das mulheres e a eficiência do sistema de saúde.
A dificuldade crescente no acesso à interrupção voluntária da gravidez (IVG) em tempo útil e sem constrangimentos constitui uma faceta grave e muitas vezes negligenciada da atual crise dos cuidados de saúde sexual e reprodutiva em Portugal. Apesar de ser um direito legalmente consagrado, muitas mulheres continuam a enfrentar obstáculos inaceitáveis, como a escassez de profissionais disponíveis, a objeção de consciência institucionalizada e a falta de encaminhamento célere, especialmente em regiões do interior ou com menor cobertura hospitalar. Esta realidade compromete o princípio da autodeterminação reprodutiva, perpetua desigualdades no acesso à saúde e viola compromissos internacionais assumidos por Portugal na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos como parte integrante dos direitos humanos.
Todas estas situações penalizam sobretudo as famílias em maior vulnerabilidade socioeconómica, migrantes, pessoas sem acesso a telecomunicações e residentes em áreas isoladas, longe dos grandes centros urbanos, num ciclo de discriminações múltiplas de que muito nos devemos envergonhar.
A APDMGP tem recebido inúmeros relatos de mulheres, algumas em fases avançadas da gravidez e de alto risco, sem acesso a consultas, sem referenciação hospitalar ou respostas adequadas do sistema. No ano passado questionámos o Governo sobre a necessidade de ocorrer uma tragédia para que medidas fossem tomadas. Este ano perguntamos: quantas mais mortes serão necessárias?
A ausência de uma resposta atempada e adequada aos cuidados de saúde sexual e reprodutiva em Portugal tem conduzido, como se tem vindo a verificar, a situações-limite de extrema gravidade, com consequências significativas para a saúde física e mental das mulheres, bem como danos morais irreparáveis.
Perante este cenário preocupante, vimos apelar à adoção das seguintes recomendações:
1. Ao nível político e governamental:
Reforço urgentemente do investimento no setor materno-infantil do Serviço Nacional de Saúde, com contratação imediata de médicos obstetras, neonatologistas e enfermeiros especialistas em saúde materna.
Reorganização da rede de maternidades com base em critérios de acessibilidade, cobertura populacional e evidência científica, afastando lógicas economicistas ou centralizadoras.
O conferir de autonomia clínica às enfermeiras especialistas em saúde materna e obstetrícia, alinhando Portugal com os países europeus que apresentam melhores indicadores perinatais.
Reintegrar a vigilância de gravidezes de baixo risco nos cuidados primários de saúde, através de equipas multidisciplinares e acompanhamento regular.
Tornar pública a avaliação anual da mortalidade materna e perinatal, garantindo transparência, prestação de contas e identificação rigorosa das falhas evitáveis.
2. Aos profissionais de saúde:
Promoção da escuta ativa e o respeito pelos direitos e escolhas das mulheres/pessoas grávidas, mesmo perante a sobrecarga dos serviços.
Adoção de práticas baseadas em evidência científica, reduzindo intervenções desnecessárias, como cesarianas por conveniência ou episiotomias rotineiras.
Cooperação em equipas multidisciplinares, valorizando o papel das enfermeiras especialistas, doulas e outros profissionais não médicos.
Denunciar internamente e, se necessário, publicamente, situações de risco institucional, tais como escalas inseguras, falta de recursos ou violação dos direitos das grávidas.
3. Ao nível institucional (hospitais, Direção-Geral da Saúde, Administrações Regionais de Saúde):
Criação de protocolos claros para gestão de escalas e encerramentos temporários, assegurando alternativas seguras para as utentes.
Extinção da linha SNS grávida, que barra o acesso real das mulheres / pessoas grávidas e em trabalho de parto às urgências e as tem impedido de receber cuidados em tempo útil e de qualidade.
Abertura imediata das urgências de obstetrícia, sem necessidade de encaminhamento para se poder aceitar uma utente.
Promoção de auditorias externas e independentes nas unidades com maiores taxas de complicações ou mortalidade materna e perinatal.
Incentivo à formação contínua sobre as últimas evidências ciêntíficas e legislação nacional, com enfoque na autonomia da mulher, parto respeitado e boas práticas internacionais.
A APDMGP reafirma a sua total disponibilidade para assumir um papel ativo e mobilizador, promovendo o diálogo entre utentes, profissionais de saúde e instituições, com o objetivo de exigir transformações estruturais assentes na evidência científica, na justiça social e na dignidade de cada nascimento. É inegável: o cenário atual é insustentável e a mudança é urgente.
Enquanto sociedade, somos profundamente definidos pela forma como tratamos os mais vulneráveis. Urge, por isso, questionar: que legado estamos a construir para as gerações futuras — e que país queremos ser?
Lisboa, 4 de julho 2025.
APDMGP