AUMENTO DA TAXA DE MORTALIDADE INFANTIL ~ POSIÇÃO DA APDMGP

Foi com apreensão que a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) tomou conhecimento da subida da taxa de mortalidade infantil em 20% em 2024.

Com efeito, a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) considera importante a responsabilização política dos partidos do atual e anterior governo, por anos de desinvestimento nos cuidados de saúde no SNS, bem como na falha em reter profissionais de saúde naquele sistema de saúde.

A APDMGP defende que se coloquem em prática soluções comprovadamente eficazes e que se admita que há muito se está a falhar com as mães e bebés deste país. 

A taxa de mortalidade infantil é um indicador crucial de saúde e do bem-estar geral de uma sociedade, reflectindo condições sociais, económicas e ambientais. Serve como um marcador-chave para medir a sobrevivência infantil e é utilizada em critérios internacionais de comparação para aferir objetivos de desenvolvimento. Uma subida da taxa de mortalidade infantil é um indicador que evidencia os atuais problemas com a saúde materna, relacionada com o acesso a cuidados de saúde e a saúde da população em geral e da saúde das mães e dos bebés com menos de 12 meses em particular.

FALTA DE COBERTURA DE CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS

As razões desta subida devem-se em primeira mão à falta de acesso aos cuidados de saúde primários. Vários estudos demonstraram que as áreas com menos médicos nos cuidados de saúde primários têm taxas de mortalidade mais elevadas, comparativamente com aquelas que têm mais médicos de família, resultando daqui um nexo causal evidente entre a assistência por estes profissionais de saúde e as taxas de mortalidade. Assim, estes profissionais desempenham um papel crucial nos cuidados preventivos, no diagnóstico precoce e no tratamento a longo prazo de situações de risco, funcionando como a porta de entrada da família nos cuidados de saúde. Esta abordagem holística contribui para melhores resultados de saúde e para a redução da mortalidade, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). https://www.who.int/publications/i/item/WHO-HIS-SDS-2018.15 

Atualmente, em Portugal, as grávidas têm cada vez menos acesso a cuidados de saúde primários, sendo esta uma das queixas que mais frequentemente chegam à APDMGP, não conseguindo agendar consulta quando descobrem que estão grávidas. Muitas mulheres não estão a fazer os exames do primeiro e segundo trimestre, nomeadamente, análises de sangue e urina, ecografias, rastreio bioquímico e exame de rastreio à diabetes gestacional.  É nesse período inicial da gravidez que se determina se uma utente tem ou não uma gravidez de risco, e se necessita ou não de uma vigilância em meio hospitalar. A falta destas consultas e exames está a aumentar os casos de gravidez de risco não vigiadas atempadamente, ou não vigiadas de todo. Não é por isso surpreendente que a mortalidade dos nossos bebés tenha aumentado, por consequência. 

MATERNIDADES DE PORTAS FECHADAS

Conforme é do conhecimento público, as utentes têm o acesso restrito às urgências, uma vez que as mesmas têm de ligar para a linha SNS grávida antes de se dirigirem a uma urgência obstétrica.

A Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto (APDMGP) já teve a oportunidade de defender a inconstitucionalidade da Linha, a qual foi aprovada por Portaria, violando assim não só diversos preceitos constitucionais, como ainda o princípio da proporcionalidade.

Também acrescentamos que houve tentativas similares para Pediatria mas que não tiveram impacto nem a aplicação generalizada que se obteve da saúde das grávidas.

Igualmente preocupante é o facto das utentes serem encaminhadas para um hospital específico após o contacto com a Linha SNS grávida, independentemente de terem sido seguidas noutra instituição, ou terem preferência por outro hospital, atentando contra a liberdade de escolha do prestador, direito da utente previsto na base 2 da Lei de bases da Saúde, a Lei nº 95/2019, acentuando ainda mais a insatisfação,as dificuldades económicas e o efeito lotaria a que as utentes de obstetrícia são, lamentavelmente, sujeitas.

Neste compasso de espera, é perdido tempo, o qual pode ditar a diferença entre a vida e a morte para um bebé. Perde-se ainda a continuidade de cuidados, algo que a evidência demonstra ser mais seguro quer para mães, quer para bebés, diminuindo a ansiedade das grávidas. 

Sabemos também que as utentes que pedem ainda durante a gravidez para serem referenciadas pelos seus centros de saúde e/ou médico/a assistente para um hospital da sua preferência, estão a ser negadas por algumas instituições que alegam sistematicamente não terem vagas para as receber.

Para além disso, acentuaram-se os casos de vigilâncias de grávidas por médicos não especialistas (internos ou tarefeiros), sem formação específica na saúde da mulher, como os médicos de família que fazem vários anos de formação na área.

As grávidas não são vistas nas 5 a 6 consultas regulares, não tem 3 exames previstos mínimos de análises e ecografias por trimestre e quando referenciadas são agendadas muito tardiamente ou apenas no período peri-parto, inviabilizando prevenção de complicações cardíacas, tensionais, hematológicas e endócrinas várias.

Também no pós-parto muitas não conseguem aceder a contraceptivos gratuitos ou revisão de parto senão após vários meses de espera apesar de recomendado serem vistas após 6 /4 semanas. 

AUMENTO DA PROCURA DOS SERVIÇOS PRIVADOS

Portugal tem assistido a um aumento da procura pelos serviços privados de saúde. Perante o cenário descrito acima, tem sido uma forma das utentes (que o conseguem suportar financeiramente) colmatarem as lacunas de assistência, cuidado e acompanhamento, de sentirem a previsibilidade e consistência tão necessárias a uma gravidez e parto livre de intercorrências. No entanto, é também no sector privado de saúde que encontramos as taxas mais elevadas de cesarianas e de insucesso na amamentação, fatores determinantes para a saúde a longo prazo dos bebés. 

FALTA DE AUTONOMIA DAS ENFERMEIRAS ESPECIALISTAS EM SAÚDE MATERNA E OBSTETRÍCIA

Continua a ser a posição da APDMGP que uma maior autonomia, o rácio adequado ao número  de recém-nascidos e a sua correcta remuneração como especialistas das/os enfermeiras/os especialistas em saúde materna e obstetrícia constitui uma das soluções para o fim das contingências nos vários serviços de obstetrícia em Portugal, bem como nos cuidados de saúde primários do SNS. A evidência demonstra de forma consistente que o aumento dos cuidados por parte das enfermeiras especialistas poderia evitar 22% das mortes maternas, 23% das mortes neonatais e 14% dos nados-mortos, o que equivale a 1,3 milhões de mortes globais evitadas por ano até 2035. Portugal não pode ignorar este recurso, existindo tantos constrangimentos na especialidade (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33275948/#:~:text=Even%20a%20modest%20increase%20in,averted%20per%20year%20by%202035. )

PARTO EM CASA

O aumento da mortalidade infantil tem sido associado à escolha do parto domiciliar. Contudo, a taxa de parto domiciliar em Portugal é menos de 1% do total dos nascimentos e nem sequer existem dados oficiais sobre esta realidade. O parto em casa é uma opção viável de nascimento em Portugal, quando devidamente acompanhado pelos EESMO e em partos de baixo risco, como sucede noutros países europeus. Para além do parto hospitalar, existem outras opções baseadas em evidências científicas que têm vindo a ser recomendadas noutros países europeus. No Reino Unido, por exemplo, o NICE (The National Institute for Health and Care Excellence) emitiu orientações referindo que os profissionais devem aconselhar todas as grávidas de baixo risco a ter um parto fora do hospital, seja em casa ou em casas de parto lideradas por midwives: “Aconselhar grávidas de baixo risco a planear dar à luz em casa ou numa unidade liderada por enfermeiras é particularmente adequado, porque a taxa de intervenções é menor e os resultados para o bebé não são diferentes em comparação com uma unidade de obstetrícia.

“Um parto planeado no domicílio ou numa unidade liderada por enfermeiros-parteiros está associado a uma maior taxa de parto vaginal espontâneo do que um parto planeado para uma unidade de obstetrícia.

Os partos em unidades de obstetrícia estão associados a uma taxa mais elevada de intervenções, como o parto vaginal instrumentado, cesariana e episiotomia, em comparação com os partos planeados em outros ambientes.” 

Com base na análise dos dados disponíveis, pode determinar-se que os Países Baixos, a Dinamarca e a Alemanha apresentam a maior proporção de partos domiciliares da Europa. A ligação entre os partos em casa e o aumento da mortalidade neonatal não foi estabelecida. (https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC8796104/#:~:text=The%20highest%20rate%20of%20home%20births%20can%20be%20found%20in%20the%20Netherlands. )

IDADE MATERNA

Outra das razões apontadas para o aumento das mortalidades infantil e maternas é a idade materna avançada em Portugal.

No entanto, de acordo com o Eurostat em 2019, a média europeia para o primeiro filho ronda os 29 anos e Portugal é, de resto, o 9º país da EU onde as mulheres mais atrasam a maternidade e o nascimento do primeiro filho, sendo que a idade em que as mulheres europeias são mães pela primeira vez varia entre os 26,3 anos na Bulgária e os 31,3 anos na Itália. A idade avançada materna é portanto uma tendência mundial e não uma situação nacional. Também houve países que mudaram a sua média nos últimos anos sem que tenha representado um acréscimo da mortalidade infantil ou materna (“largest change was in Estonia, where the mean age increased by 1 year, from 27.2 years in 2015 to 28.2 years in 2019).

https://ec.europa.eu/eurostat/web/products-eurostat-news/-/ddn-20210224-1?redirect=%2Feurostat%2Fnews%2Fwhats-new

Todos estes constrangimentos vêm, como sempre, lesar, principalmente, as famílias em maior situação de vulnerabilidade socioeconómica, as famílias migrantes,  aquelas que não têm acesso a telecomunicações, e residem em locais mais isolados, rurais e longe dos grandes centros urbanos.

É preocupante o acentuar de assimetrias em Portugal, tanto pela profunda discrepância regional, dicotomia privado-público e falha no mais básico dos direitos: o acesso aos cuidados de saúde. Será esta a realidade que queremos construir, como país? Como se sentem os decisores políticos, entidades reguladoras e instituições hospitalares por este retrocesso​ na qualidade dos cuidados? 

A APDMGP continua disponível para fazer parte da solução. E para não permitir que sejam publicitados e medializados às mulheres e suas famílias fundamentos irreais para sustentar o aumento da taxa de mortalidade infantil, sem base de evidência para a causa dos problemas existentes.

Cada bebé morto, é um bebé a mais. E um indicador de que, como país, falhámos com aquela família. 

APDMGP, maio de 2025