Nos passados dias 25 e 26 de maio do corrente ano, começou a ser exibida em canais nacionais, uma publicidade designada “Obrigado Mãe” cuja autoria é atribuída a Miguel Milhão.
Nesta publicidade, uma jovem visivelmente consternada é retratada como se estivesse a realizar um procedimento médico altamente censurável. Nesta publicidade surgem ainda profissionais de saúde com as mãos ensanguentadas e a descartar algo para um caixote de lixo, que se supõe ser um feto abortado. O Estado Português, retratado através de uma figura sem rosto, usando uma máscara preta, surge como cúmplice ou promotor de uma suposta atividade criminosa, ao carimbar uma série de credenciais para que as jovens presentes na publicidade abortem.
Desde então que a Entidade Reguladora da Comunicação Social recebeu mais de 500 queixas a propósito desta publicidade, pronunciando-se pela legalidade da mesma.
Entende a Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto que esta publicidade é manifestamente ofensiva dos direitos das mulheres, pelos seguintes motivos:
– a possibilidade de recurso à IVG é uma hipótese consagrada na legislação portuguesa desde 2007, a qual foi fruto de um referendo feito junto da população portuguesa. Questões de saúde pública foram preponderantes para que a IVG passasse a ser possível e regulamentada em Portugal (através da Lei nº16/2007). Além disso, Portugal é o país europeu que menos IVGs realiza e os números tendem a decrescer, com exceção do ano de 2023, o que demonstra o sucesso da medida.
– o anúncio incita ao ódio e censura contra as mulheres que recorrem à IVG, dando azo a uma nova discussão sobre um possível novo referendo sobre o aborto, com vista a reverter o atual quadro legislativo, tal como sucedeu na Polónia. Ademais, a IVG é narrada com um procedimento banal ao qual as mulheres recorrem sem qualquer sofrimento pessoal ou psicológico, deturpando por completo a imagem das mulheres que tenham feito IVG, cada uma com uma história pessoal diferente. Não nos esqueçamos que a Constituição da República Portuguesa protege a parentalidade consciente e a autodeterminação pessoal.
– o anúncio em causa constitui uma forma de discriminação da mulher, atento o facto da mulher ter um papel preponderante no nascimento de um novo ser e se censurar, através da publicidade, a autodeterminação reprodutiva da mulher, consubstanciando uma violação do artigo 7º nº 2, alínea d) do Código da Publicidade;
– o anúncio em causa fere a dignidade humana de mulheres que tenham recorrido à IVG, ao proceder à recordação desta memória nestas mulheres, o que supõe não ter ocorrido de ânimo leve, suscitando tristeza junto destas mulheres. Esta publicidade viola, pois, a dignidade humana da mulher, um dos aspetos que o Código da Publicidade acautela no artigo 7º nº2, alínea c).
Ora, entendemos que o autor desta publicidade possa exercer a sua liberdade artística, mas não a qualquer custo, nomeadamente, procedendo à censura pública de questões sensíveis e altamente controversas na nossa sociedade.
Os órgãos de comunicação social, pelo seu enorme alcance, detêm poder na construção e alteração do imaginário coletivo, das narrativas instaladas relativamente a qualquer fenómeno e na sua transmutação em outras que contribuam para uma sociedade mais igualitária saudável para as atuais e futuras gerações.
As normas sociais discriminatórias que impulsionam a desigualdade de género e a violência contra mulheres e raparigas tanto podem ser perpetuadas através de representações estereotipadas veiculadas pelos órgãos de comunicação social como combatidas por via de representações que espelhem e sustentem novas formas de relação, fundadas em respeito, equidade e harmonia. É esse poder dos órgãos de comunicação social que aqui vimos convocar: a sua capacidade de serem aliados ativos na construção de uma sociedade mais igualitária e sã.
Conforme afirmamos no nosso GUIA DE BOAS PRÁTICAS PARA OS ÓRGÃOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL NA PREVENÇÃO E COMBATE À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA “a violência obstétrica configura um contexto de desrespeito da mulher ou pessoa gestante/parturiente/puérpera, em termos físicos e psicológicos, uma anulação da sua individualidade, singularidade e dos seus direitos, e uma apropriação do seu corpo, em qualquer fase do seu processo reprodutivo.”
Incentivamos todos os cidadãos e cidadãs – profissionais, casais, famílias, todas e todos quantos se interessam ou de alguma forma se relacionam com as questões relativas aos direitos reprodutivos das mulheres – a terem uma visão global acerca desta questão. Reiteramos que a APDMGP, como organização que representa o ponto de vista das mulheres e suas famílias, se foca sempre na perspetiva destas e nos seus direitos e capacidade de escolha. As famílias são diferentes, cada história de vida e mulher também o são, e como tal é necessário acolher e dar condições às pessoas para que as suas escolhas possam ser feitas de forma consciente, digna e segura.
Junho de 2025, APDMGP.